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Zé Pequeno, O Filhote do Homem

Zé Pequeno se muito tivesse eram 12 anos desde que saiu da mãe, Maria das Dores, engravidada por acaso, por um bêbado desconhecido numa esquina escura de uma favela do Recife quando 15 anos tinha, apenas. Maltrapilho e mal nutrido andava a esmo em bandos pela cidade com outros Zés. Um bando de filhotes do homem disputando as migalhas jogadas pelo sistema, com as revoadas de pombos e de urubus pelos lixões da cidade. Um carrinho sem rodas, um velho tênis sem o par, um pedaço de pão, uma bola murcha. Qualquer coisa serve para aquele a quem tudo é negado, a infância, a saúde, a escola, “o que fazer” e até o colo materno. À tarde vagavam no meio do trânsito das grandes avenidas entre os carros. Vidros fechados protegem as carrancas de todo mal. Lá dentro bancos couro, ar condicionado e rostos blindados a prova de emoções. Lá fora molhados, rostos lavados, um olhar perdido e uma mão estendida. O sinal abre, os carros se vão e a fome não passa.

Um dia, outro Zé apareceu com bermuda e tênis novos.
– Quem lhe deu? – quiseram saber
– Tô trabalhando para o “Organizador”. O serviço é mole “meu”. Eu levo uns saquinhos com matinho “pros home” que vem buscar na entrada da favela. Eles me dão o dinheiro eu levo pro Organizador.Ai ele me dá um trocado.
Zé Pequeno foi trabalhar para o Organizador. Um pequenino avião carregador de saquinhos, um pombo correio no tráfego do tráfico, uma peça de pouco valor na hierárquica organização criminosa. Um dia tomaram-lhe o dinheiro da droga na esquina.
– Você fumou o bagulho seu bosta!! – bradou aos gritos o Organizador
– E agora vem com essa conversa pra cima de mim !!
– Eu juro…!! – choramingou a vozinha infantil de Zé
– Elimina, elimina !!!!

Zé Pequeno entendeu a mensagem e correu em direção ao rio que corta a cidade. Foi perseguido, atingido e abraçado por um desses braços do rio Capibaribe estendido nessa planície alagada tão Recife para uns e tão Biafra para tantos. Ferido, se debateu no ar como um pássaro e se enforcou nas águas escuras, com uma espécie de peixe envenenado, pela tragédia de não ser ninguém. Ao entardecer flutuou na bacia do Pina uma criança morta, levada na correnteza lenta por debaixo da grande ponte em direção ao mar. Lá em cima a vida seguiu seu curso normal com legiões de automóveis levando as carrancas blindadas para suas casas. Ninguém viu, ninguém notou. Afinal de contas ninguém tinha nada a ver com isso. Um problema social, culpa dos políticos, coisa para o governo resolver…

Na sua pequena biografia há um bebê (ratinho) tentando tirar do seio materno as suas ultimas conseqüências. Há o cidadão brasileiro dotado de sentimentos e sonhos. Um carrinho a pilha, uma bicicleta, ou até um futuro quem sabe? Sonhos de criança brasileira dividindo o espaço e possibilidade de sobrevivência em pé de igualdade com o caranguejo brasileiro nos mangues escuros da cidade. Há também os pés contaminados, os microorganismos que viajam por suas artérias e veias inexpressivas. Há, circulando, uma linfa transparente, insípida, inodora, sem coragem e sem futuro a definir-lhe o destino biológico e social. Há anticorpos medrosos, e bisonhos linfócitos emagrecidos acovardados diante da doença, diante da vida. Há ainda um pequeno calção branco cobrindo-lhe a sexualidade impúbere, e no rosto uma sutil esperança cobrindo-lhe a realidade. Agora boiando no rio, Zé Pequeno é um grito de socorro de um Recife subterrâneo mais pra Zé do Caixão do que pra Manoel Bandeira.

Nessa noite houve uma reunião de pessoas interessadas em um mundo melhor, gente ligada a ecologia, preocupadas com o aquecimento global, sociólogos angustiados com a violência urbana e os problemas sociais. Uma espécie de Simpósio envolvendo organizações de várias tendências. No grupo, pessoas de alto nível intelectual, profissionais liberais, professores doutores, industriais, políticos, gente da imprensa, representantes do clero, representantes de várias ONGs ligadas aos movimentos sociais e ecológicos.

Socialites e o pessoal do meio artístico ali estavam representados. Na pauta pela ordem, a pesca predatória da baleia e da lagosta, particularmente quando feita na época inadequada vitimando os frágeis filhotes daqueles animais. Depois foi a vez do peixe-boi marinho, coitado, condenado a extinção e para o qual houve uma proposta de que cada socialite adotasse um filhote e o criassem em suas piscinas domesticas, já que o animal é dócil não atrapalhando o banho das dondocas. Um jovem empresário propôs que nos fins de semana saíssem grupos dos condomínios de luxo dos morros do bairro Aldeia, a bordo de seus veículos “off-road” importados, levando mamadeiras em busca de eventuais filhotes de Mico-Leão Dourado que poderiam estar famintos no meio da mata atlântica.Coitadinhos.

Lá pras tantas pediu a palavra D. Benedita, uma negra gorda, sessentona, representante da Amcora (Amigos da Comunidade do Rato), a favela de Zé Pequeno. Falou da crescente onda de assassinatos de meninos de rua, ou seja, do crescimento da “mortandade” de Filhotes de Homem. O presidente da mesa, ecologista premiado na ONU, pediu desculpas, mas devido ao adiantado da hora, não era possível analisar o problema de mais um filhote nesse dia e deu por encerrada a sessão

Zé Pequeno, o Filhote do homem, “dormiu” no Instituto Medico Legal, e ao nascer do dia foi sepultado como indigente por não ter sido procurado por ninguém. Poderia ter sido um grande ator, um músico famoso, médico ou até um político correto, se não lhe tivessem negado o direito à condição e a dignidade humanas.

Viveu, foi tratado e morreu com menos importância do que os filhotes dos bichos.