Zumbi foi barbaramente assassinado em 20 de novembro de 1695 (!?), aos quarenta anos de idade. Ao longo de toda a história de Palmares nunca houve um personagem tão influente e carismático como ele. Isto o torna a personalidade mais importante da “Tróia Negra”. Foi uma vida apaixonante de 25 (vinte e cinco anos) de chefia repleta de fatos que se tornaram “marcos históricos”. Marcos que atingiriam seu clímax com a tragédia do sumidouro. No entanto, tanto heroísmo só o fez merecedor de um assassinato sádico e do funeral mais indigno que um ser humano poderia ter.
Tentei deixar claro que não devemos procurar explicações desmoralizantes para o sadismo do crime, pois são totalmente descabidas. Tamanho sadismo foi, como acima dissemos, devido ao fato do chefe palmarino, com toda a razão ter, na medida do possível, pago com a mesma moeda todo o mal que fizeram a seus semelhantes.
Ele se foi, mas deixou gravada no coração e na mente de cada palmarino, de cada escravo, de cada excluído, de cada injustiçado, uma lição que jamais será esquecida: a lição de que enquanto houver injustiça e não se minimizar a extravagante diferença existente entre os seres humanos é preciso, sem medo, lutar com bravura e coragem. Ensinou que tinham obrigação de se rebelar contra qualquer que seja o tipo de escravidão, pois todos nascem para ser livres. Que ninguém podia dizer o que deviam ou teriam a obrigação de fazer, porque todos eram iguais e sagrado é o direito de escolha. Que não deveriam ter medo de quem se comportasse como se fosse superior a lei porque nenhum ser humano, absolutamente nenhum, fosse quem fosse, possuísse a riqueza que possuísse, estava acima do bem e do mal ou era inatingível. Que eles, os menos favorecidos, deveriam se unir, formar um só corpo e, sem nenhuma piedade, marchar para derrubar todos aqueles que os prejudicavam: só assim poderia existir um novo comando, uma nova ordem, onde a riqueza tivesse sua origem na honestidade, não na corrupção, no trabalho digno e salário justo, não na humilhação e na miséria alheia, e fosse um patrimônio de todos, não um privilégio de poucos; que deveriam dizer não aos párias e aos calhordas que, mesmo humilhados e espoliados, faziam questão, em troca de migalhas sociais, culturais, políticas e materiais, de se unir a quem os escravizava, porque destituídos de vergonha e amor próprio, para aumentar o sofrimento de seu povo. Não deveriam se amedrontar com as constantes incursões em seu território, pois também podiam causar mais temor que esperança. Que não tolerassem passivamente os tormentos físicos e psicológicos que lhes impunham, mas partissem para conquistar a vitória e a glória. O que era a glória? A glória consistia em além de terem garantidas todas as suas necessidades básicas, possuírem o que existe de mais precioso para todo e qualquer ser humano: a liberdade, a paz e a tranqüilidade. Se lembrassem de que quem estava ali não era mais angolanos ou congoleses. Os Palmares tinham dono: eram dos palmarinos e apesar do poderio dos invasores supercivilizados, que somente queriam se apropriar de tudo o que a eles pertencia, lutassem para tornar a região livre e soberana. Se possível fosse, aceitassem colaboração na forma de ajuda e orientação, nunca na forma de prepotência e autoritarismo. Que lhes orientassem e lhes ajudassem para serem livres e não para continuarem a ser escravos. Isto era inadmissível. O caminho não era transformar conhecido em desconhecido; amigo em inimigo; correligionário em adversário; bem feitor em malfeitor, comprar pessoas como se fossem mercadorias e tratá-las como animais. O caminho não era este. Pessoas não se compram. Elas perdem a dignidade. Não se escraviza. É contra a ordem natural: são seres humanos, nossos semelhantes. Pessoas se conquistam por meio da educação e do respeito. Eles, os ditos supercivilizados, não estavam interessados em atitudes diferentes. Desejavam se beneficiar com as inimizades e aumentar sua riqueza transformando, cada vez mais, a liberdade em escravidão e os miseráveis em defuntos. Não havia mais como esperar porque jamais reconheceriam seus direitos e por isso de nada adiantava agir de maneira civilizada, mas sim, de forma truculenta. Não prometessem e nem pensassem em paz: mesmo amargurados e constrangidos, com as armas que dispunham, se preparassem para o confronto, para a vida ou para a morte.
Ah, como o presente seria diferente se todos os brasileiros menos favorecidos, excluídos e injustiçados se unissem e colocassem em prática este belo ensinamento! Eles querem e têm coragem. Não colocam porque os poucos líderes que surgiram foram sadicamente assassinados. Nada mais correto do que, em homenagem a estes líderes, nossas Instituições erigirem monumentos – no Campus da UFAL, por exemplo, há muito deviam ter construído várias estátuas que retratassem “fielmente” como era Zumbi quando vivo e o estado em que ficou após sua morte – para, quem os visse, pudesse entender melhor até que ponto pode chegar o ódio gerado pelo preconceito racial e por quem luta contra quem escraviza.
Com o início do Ciclo dos Engenhos – denomino Ciclo dos Engenhos a todo o período compreendido entre o safrejamento do primeiro Trapiche ao definitivo pejamento do último a Vapor – apareceu o mundo dos “Senhores de Engenho” que era sustentado unicamente pelo escravo africano, pela touceira de cana, pela pequena e modesta moenda do engenho e pelo respeito ao Santuário.
Este mundo era visto, entendido e funcionava, mais ou menos, da seguinte maneira:
01. Quem possuía um engenho era chamado de “Senhor de Engenho” e tratado como “Coronel”, “Major” ou “Capitão” devido ao poder que detinha e não por ter prestado um dia sequer ao Serviço Militar;
02. “Senhor de Engenho” não significava ser simplesmente o proprietário da “Casa Grande”, Capela, Engenho e Senzala repleta de negros e negras que viviam em situação miserável e de uma vasta extensão de terras: era também um título, uma categoria, que aqui possuía poderes quase ilimitados, inferiores somente aos personagens do altíssimo clero, tanto da Capitania quanto da Metrópole;
03. Na época dos “Senhores de Engenho” havia uma maior circulação de renda e, conseqüentemente uma melhor distribuição devido a existência das dezenas e/ou centenas de pequenos, médios e grandes engenhos que produziam o ouro branco que servia para tornar ainda mais ricos os ricos e poderosos os poderosos;
04. O Poder Político, com raríssimas exceções, era equitativamente dividido, pois cada “Senhor de Engenho”, além de conhecer muito bem os limites do “terreiro” de seus pares, era extremamente respeitado por todos aqueles que faziam parte desta irmandade;
05. É verdade que a quantidade de seres humanos que trabalhava como escravo nos grandes Engenhos chegava a atingir cifras preocupantes, mas de forma alguma alarmante;
06. É verdade, também, que a fome, os maus tratos e as humilhações morais eram uma constante. Muitos preferiam cometer suicídio a ter que viver daquela forma. Outros, não suportavam o rigor do cativeiro e na “flor da idade” sucumbiam;
07. Os sofrimentos físicos e morais causados aos africanos pela escravidão foi o período mais negro, mais vergonhoso, mais nojento de toda a História do Brasil. As crueldades praticadas nada deixam a dever aos crimes cometidos pela Igreja Católica na Inquisição e pelos nazistas no Holocausto. Só perdem para o sofrimento dos japoneses durante e após as duas infames explosões de bombas atômicas americanas sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki, pois além de todo o mal causado por elas, o que é um Cogumelo atômico senão o Fogo, a Tocha de Lúcifer? Posso estar completamente enganado, mas o ferimento causado nestes povos por estes atos bárbaros e animalescos jamais cicatrizará porque, por maior que seja o desejo de curá-los, por maior que seja o desejo da mente de esquecer o ocorrido, a centelha humana e divina que eternamente brilha dentro de cada um de nós, sempre lembrará as atrocidades sofridas e nunca deixará ninguém esquecer estes bizarros e indescritíveis atos cometidos contra nossos próprios semelhantes, seja por qual for o motivo: desejo de lutar, de não se render, brutalidade, prepotência, demonstração de força ou poderio;
08. Com o surgimento de novas tecnologias, uns engenhos foram transformados em usinas e outros começaram a declinar porque não havia como competir tecnologicamente. Isto fez com que os Senhores de Engenho fossem perdendo seu status, pois seu antigo poder foi, pouco a pouco, sendo transferido para os usineiros;
09. Com o fechamento dos engenhos, seus senhores, a princípio, tornaram-se rendeiros – cobradores de rendas – ou seja, cederam, em arrendamento, a parte cultivada de suas terras a nova classe;
10. Como os engenhos eram por demais rústicos e necessitava de pouca cana, a maior parte de suas enormes propriedades era improdutiva, ou seja, cobertas não só de extensas capoeiras, como também de frondosas matas. Este fato fez com que a renda proveniente das terras cultivadas fosse insuficiente para garantir a sobrevivência familiar. Esta falta de capital forçou os antigos Senhores de Engenho a venderem parte de suas terras às usinas;
11. Eles, no entanto, não tinham a pretensão de se desfazerem, por completo, do que restava de seus bens. Qual, então, a solução? Havia apenas uma: passariam a plantar cana. O interessante é que esta nova situação não só os obrigariam a fazer o trabalho de seus antigos escravos como também, aos olhos de todos, os tornariam apenas meros fornecedores;
12. Como não estavam habituados a vida difícil e ao trabalho duro do campo, foram obrigados a vender pouco a pouco o mundaréu de terras que constituíam suas sesmarias sendo que alguns, os de gênio mais explosivo e menos favorecidos em amizades e terras chegaram, até mesmo, a tornarem-se cortadores de cana;
13. Com o passar do tempo, uns ainda permaneceram com a sede da propriedade e tornaram-se donos de barracão. A grande maioria, no entanto, mudou-se para a Capital do Estado ou para a sede de seu Município e procurou investir o pouco cabedal que lhe restava no comércio, montando as famosas bodegas. Os outros cometeram suicídio ou morreram na maior e mais deplorável miséria;
14. Resumo: quem era poderoso, tornou-se fraco; quem era arrogante, tornou-se modesto e humilde; quem era rico, ficou pobre; quem era pobre, miserável; quem era miserável, tornou-se moribundo e quem era moribundo caiu, para sempre, no esquecimento. Que ironia!
15. O Ciclo dos Engenhos ficou profundamente gravado na memória de todos, principalmente na de quem o viveu, pois até mesmo as ruínas daqueles que foram destituídos de seu complexo maquinário para, de uma ou de outra forma, em outro lugar, constituir uma usina, fez com que uma das maiores inteligências de Alagoas, “João Guadalajara” pseudônimo de Théo Brandão, em 1931, compreender que sua importância era tanta – não confundir com “saudosismo idílico” – que escreveu em sua poesia “ENGENHO BÔA-SORTE”, com uma chamada de um verso de outra belíssima poesia de Jorge de Lima, publicada no Álbum do Centenário de Viçosa as páginas 240/241, após seu pejamento:
Engenho Bôa-Sorte
Ah! Usina, você engoliu os banguesinhos
do paiz das Alagoas!
Você é grande, Usina Leão!
Você é forte, Usina Leão!
Jorge de Lima
Engenho Bôa-Sorte!
Que sorte ruim a tua
Meu engenho de cana!
Como estás tão velho, tão paralítico,
Tão abandonado,
Engenho Bôa-Sorte!
Nunca mais eu ouvi o teu apito alegre,
Nunca mais eu vi as tuas moendas rodarem,
Nunca mais eu vi o bagaço arder no meio da fornalha…
Ah! Cadê as canas verdes,
Cana fita,
Cana crioula,
Cana demerara,
Que tu chupavas nos dentes das moendas?
E cadê o teu sangue,
Esse caldo esverdeado que corria nas bicas de pau?
Cadê este mel quente
Fervendo, cosinhando,
Nas tachas de cobre do assentamento?
Cadê tua vida, engenho Bôa Sorte?!
Cadê a bagaceira que desapareceu?
Os cambiteiros que traziam a cana,
Os caldereiros remexendo o caldo,
O fornalheiro, o mestre de assucar,
O maquinista, o homem da moenda,
Cadê tudo isso?
Ah! hoje apenas és uma carcassa velha…
Foi a Usina que te assassinou…
Foi a Usina que estendeu os braços das estradas de ferro,
E encheu as mãos dos seus vagons gulosos
Com a cana verde que era o teu sustento!…
Por isso nunca mais que eu vi
Ao redor de ti,
O tapete branco da bagaceira,
Nem a fumaça azulada que tu fumavas
No teu bueiro de tijolo.
Ah! meu engenho de canas das terras do Norte!
Que sorte ruim a tua
Engenho Bôa-Sorte!.
JOÃO GUADALAJARA
16. A impossibilidade de coexistência dos bangüês com as usinas devido a evolução tecnológica foi o fato gerador que fez com que outra das maiores inteligências alagoanas, Jorge de Lima, exclamasse:
Ah! Usina, você engoliu os banguesinhos
do paiz das Alagoas!
Você é grande, Usina Leão!
Você é forte, Usina Leão!
Jorge de Lima
17. Os anos, as décadas e os séculos se passaram e os canaviais em vez de diminuírem, se tornaram mais extensos e numerosos porque com o fim do Ciclo dos Engenhos – que se estendeu por mais ou menos 400 (quatrocentos) anos – teve início o Ciclo das Usinas, ou seja, apareceu o Mundo dos Usineiros, mantido por “trabalhadores de diversas cores”, a gigantesca moenda da usina e pela adoração a Mamon, seu único deus.
18. Mas, o que é verdadeiramente, uma usina? Apesar das mudanças tecnológicas externas e internas na realidade, uma usina nada mais é do que um mega-engenho, uma vez que mudou apenas as técnicas, não os objetivos, pois os dois possuem intenções semelhantes;
19. Ontem, era o Senhor de Engenho montado em seu possante cavalo, o feitor, o carro de boi e o negro na palha da cana (Fig. 01);
20. Hoje, é o usineiro em seu jatinho olhando de binóculo seus vastos canaviais, os “confortáveis” ônibus utilizados no transporte dos trabalhadores e, na palha da cana, não há distinção de cor (Fig. 02);
21. Outrora, como acima dito, quem possuía um Engenho era chamado “Coronel”, “Major” ou “Capitão” sem ter prestado um dia sequer ao Serviço Militar;
22. Hoje, quem possui uma Usina é chamado de “DOUTOR” só que uns devido à boa vida, apenas conseguiram, com muita dificuldade, no máximo, concluir o Curso Superior e outros, por mais incrível que nos possa parecer, mesmo quando falam utilizando o linguajar caboclo, erra. Escrever um pequeno e bobo texto é coisa para alienígena e ler sem cometer os mais aberrantes erros, só com o auxílio de um super-robô – aqui, não há como deixar de lembrar o velho ditado que diz: “toda regra tem exceção”;
23. Se os Senhores de Engenho de ontem marcavam profundamente o físico e a alma de seus escravos hoje, depois de tanto tempo, os responsáveis pelos numerosos e infindáveis canaviais, ainda deixam cicatrizes em seus trabalhadores com o pesado ritmo de trabalho e o baixo salário pago;
24. Com a definitiva consolidação das usinas, houve não só uma gigantesca concentração de renda, como também, do poder político e da necessidade de mais trabalhadores comandados por uma minoria que a cada dia se torna ainda mais poderosa e rica;
25. O que os moradores das regiões onde as usinas se instalaram ganharam? Que vantagens trouxeram?
26. Ganharam um trabalho quase semelhante à escravidão, o direito de viverem na mais completa miséria, como presente, a exigência de, nem por sonho, pensarem em se tornar moradores e, num futuro próximo, serem os donos de um pedaço de terra para trabalhar. Deviam, ou melhor, devem manter a terra limpa, isto é, sem nenhum ou quase nenhum morador, para o bilionário dono da usina poder plantar mais touceiras de cana em todo e qualquer espaço que houvesse. E as vantagens? Bem, as vantagens podem ser vistas nos bolsões de miséria existentes nas cidades onde as usinas se instalaram, nos problemas de saúde causados pelas queimadas, nos acidentes provocados pelos gigantescos caminhões com milhares de toneladas de cana que trafegam pelas estradas e nos impedimentos do tráfego nas rodovias pelos trabalhadores dos canaviais por falta de pagamento;
27. Quem, ainda hoje, passar pelas regiões onde existem os extensos canaviais, verá não um lago, uma lagoa ou um mar, mas um oceano de seres humanos destituídos de toda qualquer esperança para, cansados e esfomeados, enfrentar a palha da cana ou como animais que esperam a hora de serem levados para o matadouro, sentados ou em pé à beira do asfalto, esperar os transportes que os levarão para sua modesta casa situada em um dos vários mutirões existentes na cidade onde, em vez de descanso, encontrará mais sofrimento, tristeza, desespero e angústia;
28. Por que sofrimento, tristeza, desespero e angústia? Após uma árdua e duríssima semana de trabalho aquele coitado que tem o direito de tomar umas “lapadas”. Antes, porém, deixa a grande fortuna que ganhou com sua querida esposa para que ela possa fazer “feira”. Sozinho, pessimamente vestido e calçado, vaga como um lúgrebe fantasma pela escuridão da noite, tomando uma ali e outra acolá. Fica completamente liso. Pensa em sua vida. Não há luz no fim do túnel. Não há esperança. Não há perspectiva. O seu destino está selado. Ao longe vê um rústico e pobre boteco. Pertence a alguém que tem fama de “cabra ruim” e “brabo” (este tipo de gente existe em quase todos os ambientes). Mesmo assim, entra e, com lágrimas nos olhos, pede a um e a outro que lhe pague um gole. Depois de ouvir muitos “saia já daqui”, escuta um “psiu”. É de um conhecido que, bêbado, num canto do boteco, está quase caindo de um tamborete. Que semelhança de fadário! Toma uma ou duas lapadas de “raiz de pau”. Totalmente embriagado, volta para casa. Com a barriga roncando de fome, procura qualquer coisa para comer. Não há nada. Nem mesmo um “taco” de “pior sem ela” para engolir com um punhado de farinha azeda. Olha para um buraco num canto da cozinha – que foi construída de taipa, porque o restante dos blocos de cimento que os políticos lhe prometeram nunca chegou – que é a morada de um enorme gabiru, e vê o resto de três batatas doce. Sem nenhum medo, bota água numa lata, arruma a trempe, acende os gravetos, cozinha e come o que o velho gabiru deixou das batatas;
29. As crianças que dormem no chão batido, em cima de um pequeno pedaço de pano, acordam e começam a chorar: uma, porque está doente, com os brônquios cheios de catarro queimando-se de febre – e não há médicos nem remédios para curá-la – e a outra devido à dor que sente no estômago, ou seja, a dor da fome. Pede que a mais velha faça-as parar. Sua mulher lhe diz que ela, mesmo àquela hora da noite,ainda não chegou em casa. Ele, aos gritos, pergunta para onde ela foi. Sua desesperada esposa conta-lhe, então, toda a verdade: a menina, que mal havia completado 15 (quinze) anos, tinha se “perdido” com um homem casado e estava grávida. Por medo, não diz que o filho mais velho também não está em casa porque, sem emprego, viciou-se em álcool e, para sobreviver, tanto trafica quanto consome drogas. O mundo desaba a seus pés. Ele fica mudo. A partir daquele instante não diz mais uma só palavra. Abre a porta, tira a camisa e senta na estreita e alta calçada. Olha para o céu estrelado e, mesmo bêbado, consegue ver as estrelas conhecidas como “As Três Marias” e “O Rosário de Maria”. Olhando-as, chora, chora, chora. Como caboclo criado dentro dos mais rigorosos preceitos religiosos, pede perdão para os seus pecados, clama e implora por proteção divina para sua família e pergunta qual foi o seu erro. Seu pranto é tão grande que acorda a vizinhança. Aos poucos se acalma e deita na úmida e mal feita calçada;
30. Lembra da época que morava no mato. Sua casa ficava na boca da grota. Era de taipa e coberta de palha de coqueiro, mas possuía os ambientes amplos e ventilados e um extenso terreiro onde seus pequeninos filhos brincavam e viviam felizes. Havia, também, um caudaloso riacho cheio de tocas e ribanceiras frondosas, onde ele costumava pescar de tapagem e de puçá. Depois de sua pescaria que, para dizer a verdade, era mais uma festa, sempre levava para casa o jundiá, a piaba, a pisirica, a candunda, o cará simples e o zebu e a saborosa traíra. De seus roçados, colhia o inhame, a macaxeira, o milho, a batata, o feijão e a fava. No quintal, nunca faltava o guiné, a galinha capoeira, o capão, a franga de peru e o pato. Quando matava um desses animais, porque mole de gordo, sempre chamava seu “cumpade” para ajudar a saboreá-los. Mais adiante, plantara um sem número de pés de bananeira e cana caiana. Logo depois, havia uma mata coalhada de tatu peba e verdadeiro, paca simples e de concha, cotia e outros bichos saborosos. Lembra de sua espingarda soca-tempero que ganhara fama porque com ela matara de espera, diversas caças distantes do girau. Lembra de seu cachorrinho, um legítimo vira-lata, cheio de pulgas, e da boca preta, também famoso, por ser conhecido como um ótimo farejador. Uma semana depois da mudança, ele foi atropelado e morreu. Que triste sina!
31. E hoje, onde e como vive? Na “cidade”, num lugar chamado mutirão tal – seria melhor dizer favela ou senzala – cheio de maus elementos – na verdade, vítimas do sistema – drogas, prostituição e botecos. Mora numa casa metade de bloco, apertada, de parede emprestada e não tem nada, absolutamente nada. Soluçando, cai em si, ou seja, na realidade: toma consciência de que foi enganado. Aceitou a pequena indenização oferecida pelos comandados de quem queria sua terra limpa, acreditou na promessa da casa própria e nos falsos contos dos super-atrativos, facilidades e felicidades oferecidas pela cidade e agora descobre que tudo não passava de uma grande mentira. De uma grande enganação;
32. Ali o céu não era azul, da cor do Manto de Nossa Senhora e nem era vermelho como o “Sangue que é a vida das almas” como lhe disseram. Era laranja, como o de Lúcifer. Ele era feliz e não sabia. Aproveitaram-se de sua honestidade e ingenuidade, arrancaram-no do Jardim do Éden, onde vivia com sua família em companhia das fadas e dos anjos, e jogaram-no para viver no inferno no meio dos mais terríveis e temidos demônios. Eis a Revelação! Eis a Verdade! A Grande Verdade!
33. Sua resignada esposa abre, devagarzinho, a janela. Observa-o, e começa a chorar. Chorar por ver o marido que possuía, caboclo inteligente, corajoso, forte e destemido, reduzido aquele trapo humano. Ela o ver meter a mão no bolso, tirar um retrato de meu “Padinho Ciço” e começar a conversar com ele: “Por que, meu Padinho, você me deu vida se tenho que sofrer desta maneira? Só existe cruz para mim? Por que permitiu que eu nascesse se para mim está reservada essa vida miserável? Não posso me comparar sequer a um pé de ‘quentro’ ou de cebola verde, que se planta e na época certa se corta para temperar a comida. Sou pior. Muito pior, porque nem para tempero e nem para adubo eu sirvo, pois ninguém planta nada para se alimentar sobre a sepultura de um ser humano, ou utiliza seu cadáver para adubar uma planta que se vai comer. Para que, então, eu continuar vivendo”?
34. Ela fica pensativa e com medo, ao ouvir aquelas palavras. Chega até mesmo a pensar em abandoná-lo e ir embora para casa de seus pais. Mas, é sua mulher. Sua fêmea. Uma verdadeira fêmea, que ama o marido, não o abandona nunca, por ele ter ou se sentir fracassado, adquirido vício ou se encontrar em tal ou qual situação. Pelo contrário, seus defeitos, suas deficiências, em vez de afastá-la, aproxima-a muito mais. Há dois mil anos o “Meigo Nazareno” não dizia que são “os doentes que precisam de médico e não os sadios”? Por acaso não é o dever do homem ou da mulher apoiá-lo(a), confortá-lo(a), nas horas mais críticas?;
35. A sua maneira, aprendera que no verdadeiro amor não há espaço para interesse, cinismo, mentira, vagabundagem. É o amor que salva. Quando, infelizmente, existem momentos como este, seja para ele ou para ela, o dever de cada um é lutar para retirá-lo(a) do buraco em que temporariamente se encontram;
36. O pior é que quando analisamos determinados casos descobrimos que tudo não passa de uma questão de endereço, pois todos nós temos, na realidade, dois endereços: o interno e o externo, o intrínseco e o extrínseco;
37. O interno ou intrínseco, é aquele que gostaríamos que todos soubessem, ou seja, trata-se da vida que todos nós gostaríamos realmente de ter;
38. O externo ou extrínseco, é aquele que somos, de uma ou outra maneira, “obrigados” a levar, isto é, o que as circunstâncias, pura e simplesmente, nos oferece;
39. Se substituirmos endereço por trabalho e, principalmente, relações humanas, saberemos a importância que esta troca assume. Pergunto: quantos residem no endereço certo e no errado? Quem e quantos se beneficiaram ou continuam a se beneficiarem de um e de outro caso?
40. Devido a sua religiosidade, comunica a alguns amigos que vai se aconselhar com o Padre da cidade. O que ouve o deixa ainda mais desesperado: uns dizem que o religioso é como machado, pois não pode ver um pau em pé; outros, que ele gosta mesmo é de balançar a bundinha na frente dos jovens ou de uma câmera de televisão e, finalmente, ouviram dizer que ele tem uma afeição muito grande por crianças. Basta! Agora, ultrapassaram todos os limites. Mexeram com algo que para aquele homem, um fervoroso crente, era absolutamente intocável: jogaram sua fé no lixo. Para ele, aquilo era o prenúncio do fim do mundo. Sua última esperança não mais existe. Não há saída;
41. De repente, lhe vem à memória tudo o que um dia lhe disse seu “cumpade”, “Mané Cutia”, que morava na grota da surucucu: “Cumpade, os bichinho que nos faz, sai por um buraco e entra por outro buraco. Somo feito por um buraco. Nacemo por um buraco. Vemo por um buraco. Suspiramo por um buraco. Ouvimo por um buraco. Falamo por um buraco. Comemo por um buraco. Cagamo por um buraco. Vivemo num buraco. Morremo e vamo pra um buraco”. Arrepende-se, amargamente, por não ter dado ouvido as sábias palavras de seu “cumpade”. Principalmente, as da penúltima frase;
42. Quanta verdade! Quanta sabedoria! A Terra é, ao mesmo tempo, um gigantesco cemitério, morada dos mortos, e um mega-útero, órgão produtor de todo tipo de vida;
43. À sua mente, vem o pior: o negro pensamento de atentar contra sua própria vida;
44. AH! A Morte! A indestrutível Morte! Percebe que a Morte é uma deusa e que, também, tem um irmão: o deus Tempo. Quantas ricas e poderosas criaturas já perderam sua beleza e grandeza devido a suas ações? Para esta deusa e este deus, tanto faz ser rico ou pobre, pecador ou santo, crente ou ateu, importante ou humilde, branco ou preto, todos são tratados da mesma forma, pois tudo o que existe neste nosso Universo, seja o que for, tem um fim, porque a deusa Morte e o deus Tempo tudo destrói. Perplexo, descobre então, que a Grande e Poderosa deusa Morte e o Grande e Poderoso deus Tempo são os únicos e eternos Senhores da Igualdade;
45. Pensa: a morte é o descanso, o esquecimento, a paz. Somos sementes. Meras sementes! Nascemos para morrer. E é exatamente no percurso compreendido entre a vida e a morte que nos tornamos “deuses”, pois passamos de seres criados a seres criadores e mantenedores da vida;
46. Agora, sim. Agora, tudo fica muito claro. Agora, compreende porque o Meigo e Santo Galileu certa vez disse: “Vós sois deuses”;
47. Até quando este homem reprimirá sua ira? Não se conscientizará de que se alguém deve pagar por um erro cometido não é ele? Perdoará os mentirosos? Manterá sua resignação? Ninguém quer saber do seu sofrimento. Dorme no chão, numa velha esteira. Percorre quilômetros até o seu miserável e desgraçado trabalho. Vive cercado de moscas e outros animais detestáveis e pestilentos. Não mais vende ou consome o produto de seu trabalho porque não mais possui terra para o cultivo da lavoura. Sua família está a beira da destruição: suas filhas menores doentes, a mais velha prostituída e o filho viciado em álcool e drogas. Ele não mais tem a velha e aprazível habitação. As saborosas iguarias consumidas alegremente outrora na companhia dos “cumpades”, como por castigo, desapareceram. Educação, saúde e segurança, simplesmente não existem. “Trabalho”, só por uma parte do ano, isto é, quando as usinas começam a safrejar. Sua esperança, até aqui, não passou de falsas promessas;
48. Prezado amigo, permita-me lhe dizer algumas palavras: eu sou da “civilização” do cuscuz com leite, do mungunzá, da peteca e do bodoque; da época em que não havia “laranjas”, não se falsificava pinto e lugar de passarinho era no campo e não nas cidades; das estradas cheias de camaleão, onde só passava cavalo selado e feira só se fazia através de burro com cangalha e caçuá.
49. Por isso, conheço e muito bem, o tamanho de sua aflição e angústia e sei que devido ao peso de sua cruz seu corpo está vergado porque o pouco, ou melhor, o nada, que você obteve durante tantos anos de trabalho duro é completamente diferente do muito que outros conseguiram e continuam a conseguir, num curtíssimo período de tempo;
50. Você é o trabalhador que, incrível e paradoxalmente, trabalha, trabalha, trabalha para nada possuir. Aquele que repleto de motivos tem o direito humano e divino de se rebelar contra quem o condena a completa ruína, ou seja, a miserável condição humana em que vive, pois a terra além de ser um direito de todos, deve pertencer a quem nela trabalha e dela retira sua sobrevivência e não a quem a possui para escravizar ou por pura ostentação;
51. Vivemos num País onde o próprio sistema é quem mais contribui para que haja desigualdade. A desigualdade pressupõe senhores cada vez mais ricos e servos que, na grande maioria das vezes, passam da triste condição de pobres para a de miseráveis. Onde há senhores e servos, há o odor fétido da tendência para o fascismo, regime que tantos males têm causado a humanidade;
52. A isto, acrescente-se, ainda, a falta de oportunidade da grande maioria e, principalmente, a prática da desonestidade;
53. São tantas e envolve tantos as acusações e denúncias de corrupção no nosso País que, às vezes, toma conta de mim o negro, absurdo e desgraçado pensamento de que não cometeríamos grande erro se trocássemos a letra do Hino Nacional Brasileiro pela da conhecidíssima música “Reunião de Bacanas”;
54. Portanto, acredito ser um verdadeiro delírio pensar que aqui possa haver, a não ser através de milhares de baionetas ensangüentadas, uma diminuição de nossas extravagantes diferenças;
55. Enquanto numa pessoa honesta, como você, que vive do suor de seu rosto – derramado devido ao trabalho com a limpeza dos latifúndios alheios – e dos calos de suas mãos – causados pelo cabo da foice e da enxada brocando ou limpando mato – o desespero é tão grande que o leva a querer tirar a própria vida porque, em sua ingenuidade e inocência, foi vítima de uma terrível enganação, o que ocorre com os personagens do alto clero, os verdadeiros responsáveis?
56. Com o que ganharam através do “suor, das lágrimas e do sangue” daqueles cujo trabalho só serviu para torná-los, única e exclusivamente, mais ricos e poderosos, vivem nababescamente desperdiçando somas consideráveis com o absolutamente supérfluo;
57. Se determinados cidadãos vivem nababescamente desperdiçando somas consideráveis com o absolutamente supérfluo, não é o importante. O que realmente importa é saber como e porque em pleno século XXI eles ainda conseguem manter em suas mãos tanto poder. É claro que suas “ligações” e o fato de serem proprietários de um ou mais mega-engenhos pesa na balança. Mas, será que somente isto é suficiente para explicar a situação? Não, acredito que não. Se têm poder, é porque o poder lhes é concedido. Isto me faz lembrar a Paixão de Jesus. Me faz lembrar uma frase que o Redentor pronunciou para Pilatos;
58. De acordo com o Evangelho Segundo São João, depois de Jesus ser preso, interrogado por Anás e, possivelmente, por Caifás foi enviado a Pilatos. Este, após um breve interrogatório, não encontrou no “Meigo Nazareno” nenhum motivo para castigá-lo. Comunicou o fato aos judeus e como se vivia o clima da Páscoa, perguntou a quem ele deveria conceder a liberdade: se a Jesus ou Barrabás! Responderam: “Barrabás”. Com o objetivo de acalmá-los e livrar o “Profeta Galileu” da crucifixão, determinou que o flagelassem. Nesta ocasião, além de ser objeto de zombaria, foi colocada em sua cabeça uma “coroa de espinhos” e sobre seus ombros um “manto púrpura”. Quando o viram, ficaram ainda mais enfurecidos e violentos e gritaram a uma só voz: “Crucifica-o! Crucifica-o!”;
59. O representante do Império Romano não querendo aplicar-lhe a pena capital novamente o interrogou. João 19,9-11 nos informa o que ocorreu: (9) Tornando (Pôncio Pilatos) a entrar no pretório disse a Jesus: ”De onde és tu?” Mas Jesus não lhe deu resposta. (10) Disse-lhe, então, Pilatos: “Não me respondes? Não sabes que eu tenho poder para te libertar e poder para te crucificar?” (11) Respondeu-lhe Jesus: “Não terias poder algum sobre mim, se não te fosse dado do alto; por isso, quem a ti me entregou tem maior pecado”;
60. “Não terias poder algum sobre mim, se não te fosse dado do alto; por isso, quem a ti me entregou tem maior pecado”. Isto é o que há mais ou menos dois mil anos escutamos ou lemos. Nada mais correto. Nada mais verdadeiro. Mas, por que o Mestre dos Mestres disse isso? A quem ELE se referia? É o dever de uma pessoa honesta fazer interrogações. Note-se que a palavra “alto” está escrita com “a” minúsculo. Esta particularidade é muito importante, pois indica que Jesus não se dirigia a seu Pai ou aos Poderes Divinos, mas sim, ao vulgar, efêmero e podre poder terreno. Então, quando ELE diz “Não terias poder algum sobre mim, se não te fosse dado do alto” há aqui uma clara referência a César (no caso, Tibério) porque toda autoridade de Pôncio Pilatos era oriunda dele. A segunda parte da frase “por isso, quem a ti me entregou tem maior pecado” não pode se referir a outros, senão a Judas e aos fariseus: foi Judas quem O entregou aos fariseus e foram estes que exigiram de Pilatos Sua crucifixão;
61. Grosso modo, se substituirmos a palavra “poder” pela palavra “sistema”, não fica muito difícil descobrir que, atualmente, César (Tibério) seria o Presidente da República com seus diversos cortesãos; Pôncio Pilatos, determinados governadores e os que gravitam a sua volta, unicamente a serviço de seus interesses pessoais ou políticos, sendo bajuladores de plantão ou não; os fariseus, seriam os mantenedores do status quo, ou seja, aqueles que se tornam mais ricos e poderosos através do derramamento sem limite do “sangue, do suor e das lágrimas” dos menos favorecidos; Judas, todos os colaboradores dos fariseus, isto é, os que existem para “criminalizar a legalidade”, e JESUS representaria os milhares e milhares de trabalhadores, da zona rural e urbana, que se encontram na mais miserável e deplorável situação;
62. Muita gente esqueceu o motivo que o levou a forçadamente como outrora fizeram com os africanos, a deixar o torrão querido. Esqueceu o tempo que só se alimentava de pirão d’água. Quando tinha! Esqueceu o pau de arara em que, aos soluços, seguiu para a “cidade grande” porque onde residia nada havia a oferecer. Esqueceu porque se embriagou. Embriagou-se, não com álcool, mas com o poder. E saibam: esta é a pior de toda e qualquer embriaguez porque ela nos contamina com o vírus dos Sete Pecados Capitais que, entre outros males, nos faz descumprir aberrantemente determinados Mandamentos;
63. Por acaso não é verdade que o comportamento de determinados personagens considerados ilustres, inteligentes e merecedores de admiração e respeito – melhor seria chamar uns de comandantes de tropa de choque e outros de garotinhos propaganda porque, ao se promoverem desejam serem aproveitados de alguma forma na próxima eleição – contribuem para substituir ou destruir a lisura do somatório da doutrina ensinada pelos Dez Mandamentos e pelo “Meigo Nazareno”?
64. Infelizmente, quando isto ocorre, nada mais se pode esperar senão o aprofundamento do abismo entre as classes, da depravada e irracional doutrina do maquiavelismo e a instituição da funesta nazificação. Tudo, através de diplomáticos e solenes atos “democráticos”;
65. Sou burro demais para entender a negação da divinização e da prática do cristianismo, principalmente quando avalizada por reis que se dizem cristãos;
66. Claro está o motivo pelo qual a história, ao longo dos milênios, em lugares e com pessoas diferentes, vem se repetindo. Só que agora, em escala exponencial!
67. Vivemos numa República “emergente”, mas com a maioria esmagadora de sua população em estado submergente e que possui Estados como o nosso, Alagoas, onde em pleno século XXI, ainda vive no Ciclo do Açúcar, pois existe mais de 100.000 (cem mil) trabalhadores sob o tacão das botas de mais ou menos 23 (vinte e três) privilegiadas famílias que, juntas, formam a chamada Realeza do Açúcar, e que, com raríssimas exceções, ainda continuam com a tradição do comportamento medieval e, conseqüentemente, do relacionamento vassálico;
68. É por isso que mais de três séculos nos separam da morte de Zumbi e este País ainda não se transformou numa Pátria, pois não há como se negar o fato de que no Brasil – nosso amado útero e sagrado túmulo – milhões de brasileiros não tenham sequer como satisfazer suas mais necessárias necessidades básicas;
69. No entanto, num País como o nosso onde se costuma colocar uma cortina sobre os eventos traumáticos, a escravidão acabou e os grandes e pequenos engenhos com suas grandes e pequenas senzalas, não foram, de forma alguma, substituídos pelas usinas e pelas grandes e pequenas cidades, aquelas com suas favelas e estas com seus mutirões, pois fatos como estes são considerados normalíssimos apesar do conhecimento de que, excluindo-se as raquíticas esmolas oferecidas, a grande mudança resume-se, na verdade, unicamente, a uma questão de nomenclatura;
70. Temos uma multidão ávida por mudanças estruturais. Uma multidão, que desde os tempos coloniais não para de crescer. Uma multidão que é contra todo e qualquer tipo de acefalia ou erro e que começa a se rebelar. Uma multidão, que não continuou a transformar suas inúmeras e diversificadas ferramentas de trabalho em outros artefatos para lutar contra tudo o que de errado há porque, desde o sádico assassinato de Zumbi, falta quem a guie e sobra quem a engane;
71. Contudo, prezado amigo, a esperança não pode morrer, pois ela sendo o alimento do espírito, representa a transformação dos sonhos em realidade e jamais nos faz esquecer que todos nós temos um limite que ninguém, absolutamente ninguém, tem o direito de ultrapassar;
72. Lembre-se que no começo Zumbi foi alvo de uma violenta perseguição, depois passou a perseguidor e finalmente foi brutalmente assassinado porque vítima da traição, isto é, da legítima mãe da falta de cumplicidade, companheirismo e fidelidade. Seu corpo estava destruído, é verdade, mas seu espírito, intacto, ascendeu para junto de seus ancestrais onde, com certeza, foi recebido com todas as honras possíveis que os habitantes do outro lado podiam oferecer;
73. É impossível imaginar o tamanho da dor, do desespero, do vazio e da falta de esperança causada por sua morte. Seu impacto foi, é claro, extremamente profundo não só nos corações e na esperança dos escravos, mas no de todos aqueles que amam a liberdade;
74. Como poderiam matá-lo, se era imortal?
75. Ele não era fisicamente imortal, como acreditavam. Imortal era, é, e continuará sendo a sua interminável luta, pois como ontem, ela continua mais necessária do que nunca;
76. Portanto, faço questão de lhe lembrar que Zumbi não desapareceu, pois o caminho e a lição que ele mostrou e deixou aos brasileiros – o da não resignação e o da insubmissão a injustiça – além de continuar vivo, ninguém jamais esquecerá, pois supera as horrendas e apavorantes perseguições que, podemos dizer, tornaram-no um mártir porque ele – também os escravos e palmarinos – não foi simplesmente morto, mas vítima de uma selvageria física e moral inaudita;
77. Não pense que não acho lastimável, inconcebível e inexplicável o fato de, num País como o nosso, repleto dos mais drásticos e aberrantes contrastes, ter existido apenas um herói que não foi imposto, mas se impôs, isto é, que não nos empurraram de goela adentro, pois surgiu de baixo para cima e não de cima para baixo;
78. Fique sabendo, porém, que em sua efêmera vida Zumbi conseguiu contribuir para realizar uma façanha importantíssima: corrigir os erros e defeitos dos responsáveis pela redação e aplicação de nossa Justiça;
79. Portanto, prezado amigo, lhe dou um conselho: não perca sua fé, sua esperança, nem se entregue, mas sim, perceba que o caminho a seguir é trocar sua enxada por um machado de carrasco, seu facão ou sua foice, por uma espada e sua resignação pelo ódio e marchar. Marchar para um acerto de contas contra todos aqueles que o oprimem, escravizam e exploram, pois “Entre escravos, o mais covarde é aquele que protege o amo”.
80. Caso marches, certo fiques que te direi: quando necessitares de um amigo, olha a teu lado que lá estarei.
