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Uma cidade do outro lado

Como todo apego afetivo resulta de uma convivência, sobressaindo-se a família e as amizades, a terra natal também faz parte dessa relação por ser depositaria das nossas primeiras experiências de vida. Também é nela, quando sentimos o prenuncio do fim com a chegada do saudosismo da velhice, suas memorias e inesquecíveis lembranças que a transportamos, numa visão virtual entre a duvida e a esperança, a sua provável existência do outro lado.

Alberto Calado, apelido que revelava um temperamento retraído, nascido no povoado Serrita, encontrava-se sessentão quando, aposentado, fez o caminho de volta para viver o saldo que lhe restava. Embora tenha vivido por muitos anos afastado, visitava-o com alguma frequência, quando começou a perceber graduais transformações em sua fisionomia. Hoje, para sua tristeza, não resta nenhum traço do passado. Seu solo, outrora arenoso, deu lugar ao calçamento, a mais grave lesão à memoria de sua infância. Suas casas, outrora de taipa com cobertura de palha, não mais existem.

Não é o Serrita atual, uma terra quase estranha em todos os aspectos, especialmente em grande parte da sua população, desconhecida, mas no primitivo onde se encontram suas mais caras e belas recordações. Suas areias, atração irresistível para qualquer criança, mormente se foi criado livre como um pequeno índio, como no seu caso, foi palco de variadas brincadeiras na sua infância e juventude. O dia não era suficiente. Após o jantar, melhor se fosse noite de lua, as brincadeiras tinham continuidade. Energia elétrica não existia. De inicio, eram puras e ingênuas. Mais tarde, despertada a curiosidade sexual, deram lugar à busca por aventuras que dessem vazão a libido. As primeiras experiências não aconteceram com mulheres, mas com fêmeas domesticadas do reino animal. O mais divertido nesse tipo de aventura era quando havia um flagrante por parte do proprietário, obrigando a empreender as mais desabaladas fugas.

Mais adiante, quando estudava na capital, existia a mais estreita convivência entre parentes e amigos, por ocasião das férias escolares. Inúmeras farras aconteciam. Os namoros, o suprassumo das delicias da juventude, têm uma posição de destaque no deposito de suas memorias. Nesses momentos de devaneios seus pensamentos, à procura das reminiscências, flutuavam pelos extremos entre a tristeza e a alegria. Inesquecíveis eram as lembranças dos parentes e amigos que se foram para a outra vida, assim como de amigos de sua infância que muito cedo foram obrigados a migrar para outras cidades e nunca mais voltaram. Num sentido inverso, recordava-se dos personagens típicos, como existem em todos os lugares, pela sua forma original de pensar ou de um comportamento extravagante e divertido.

Essa mistura entre a nostalgia e memoráveis alegrias do passado costumava leva-lo a meditar sobre a possível continuidade da vida após a morte e poder rever, do outro lado, seus entes queridos. Embora negue a sua razão, um resquício de dúvida pairava no ar. Não conseguia imaginar a possibilidade de existir o mito da vida eterna. Nada pode ser eterno, a não ser a eterna sucessão das coisas. Não em linha reta, mas através de ciclos subsiste a vida.

Os espíritas, através dos fenômenos mediúnicos não explicados pela ciência, acreditam na vida após a morte. Como seria essa vida no além? Idêntica com a que aqui vivemos, ou apenas no plano espiritual? Um dos grandes mistérios da ciência é descobrir qual a relação entre matéria e inteligência. Pode uma existir sem a outra? Os órficos, pitagóricos e Platão acreditavam que a alma antecede ao corpo, nele encontrando-se presa por uma falta cometida, devendo purificar-se para poder voltar a sua condição espiritual. Existe prazer no plano puramente espiritual?

Chove a cântaros as perguntas e nós, na pequenez da nossa inteligência, permanecemos a sofrer os efeitos da seca do conhecimento, incapaz de dissipar os mistérios que tanto nos inquietam. Mas, pensando bem, dizia a si mesmo, o que seria da vida sem mistério? Niels Bohr, recordava-se, afirmava que tarefa da ciência era reduzir todos os mistérios a trivialidades. Até os grandes físicos acreditam em utopias, no poder ilimitado do conhecimento.

Voltou a pensar na sua pequena, Serrita, há poucos anos transformada em cidade. Será que existe uma copia dela em outra dimensão? Se todos tivéssemos certeza na existência de outra vida, o que seria da presente? Um perigo a sua sobrevivência? Não sabia. Das indagações feitas e tantas outras que deixava de fazer, ficou apenas com uma certeza: quase todo velho, levado pela memoria sentimental, sofre crises ilusórias de reencontros com passado no além. Alberto Calado, escravo incapaz de fugir da abordagem dos mistérios da existência, fruto de um temperamento introspectivo, transformou-se, até o fim de seus dias, num trágico vencido pela duvida das duvidas: será que iria rever sua querida Serrita do outro lado, numa outra dimensão.