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Um trem de volta pra casa

Do 20º andar contemplo a noite da grande cidade que um dia me acolheu. Um oceano de concreto, antenas e luzes. Um Airbus passa ao longe a piscar e uma abelha ronda a flor na jardineira da minha varanda. Onde será sua colméia? Estará perdida a esta hora da noite. Por perto passa um veiculo com a sirene ligada. Alguém será salvo, ou será preso. Há um murmúrio contínuo dos motores da cidade que nunca dorme nem dormirá jamais. De tão constante se parece com o silêncio dos abismos, das quedas d’água, dos oceanos. Ligo o som, e nele o guitarrista Pat Matheny sola a musica “The Last Train Home”. O som da guitarra tendo ao fundo o ronco noturno da grande cidade, me conduz a um vertiginoso insight que me leva a uma viagem aos meus passados a bordo do “Ultimo Trem pra Casa”. É como se a musica me houvesse ligado a um grande cordão que estivera sempre atrelado ao meu destino, firmemente amarrado a minha adolescência, tempo em que deixei minha “cidade coração” no interior do meu interior. Essa grande linha viria a traçar a rota do meu destino como uma espécie de pegadas dos meus sentimentos, uma trilha da minha historia. E agora passados os cinqüenta e tantos anos de vida, algo houvesse dado um toque naquele cordão, sugerindo uma volta, um trajeto inverso da vida. Embarco nesse trem, numa estação virtual, e nessa viagem imaginária não sei como reagirei ao me deparar, na paisagem da estrada com uma a uma das cenas do meu passado, minha ingênua credulidade, minha emotividade, meus medos. Serão eles ainda tão medonhos vistos assim às avessas, ou serão eles que se amedrontarão agora diante de minha figura mais calejada, grisalha, mais serena? E quando eu cruzar em uma das curvas com a empáfia dos meus vinte e poucos anos? Cumprimentá-la-ei com humildade sem deixá-la perceber que a rejeito agora.

Lhe direi que o passarinho não se esforça pra voar, apenas voa. Que a planta não tenta crescer, apenas cresce. Que sol nascerá amanhã quer queiramos ou não, e que o homem é apenas um pequeno inseto diante da imensidão do Universo. Ao chegar à minha cidade descerei pelas ladeiras da minha infância como uma criança, recriando o encantado, reformulando antigos sonhos, escorrendo vida a fora no sentido inverso há tantos anos do presente. Na certa choverá forte e a água descerá em profusão pela guia da rua de paralelepípedo secular morro abaixo em direção ao Rio São Francisco. Dessa vez colocarei na correnteza minha canoa de brinquedo com velas de pano e a acompanharei correndo pela rua, ou quem sabe nela embarcarei o meu imaginário, na minha rota de redescobrimentos, de redefinições, ladeira abaixo na minha cidade coração. Abrirei com cautela o grande portão de ferro de minha velha casa do fim do Século XIX com as iniciais do meu avô no frontispício e onde hoje não mora ninguém. Do grande quintal nosso cachorro “Leão” latirá as boas vindas quando sentir meu cheiro. Descerei as escadas para alisar sua cabeça, e também eu sentirei o cheiro da minha infância que virá do Jasmim. Ai andarei extasiado por sobre o chão vermelho das flores caídas do Jambeiro. No interior da casa enorme andarei a passos lentos pelo assoalho cruzando suas portas altas. Farei uma oração no santuário e na biblioteca lerei o Tesouro Juventude, agora de óculos. Recitarei a “Historia de um Cão” de Luis Guimarães, e na certa chorarei. Mais uma vez.

É claro que mandarei consertar o velho gravador de rolo Akai de meu pai, e nele ouvirei com melancólica bondade as poucas fitas do nosso meteórico conjunto de Rock (The Greens). Rezo para que o tempo não as tenha desmagnetizado, nem que tenham sido vitimas da avidez das traças que moram no porão da velha casa há tantas gerações. Recomprarei minha guitarra Phelpa com distorcedor e o meu bom amplificador True Reverber. Solarei “O milionário” dos Incríveis, e colocarei mamão na gaiola do passarinho. A noite descerei a ladeira da Corrente na minha bicicleta Merck-Swiss azul metálico. Encostarei o dínamo no pneu e o farol criará um feixe de luz na neblina e na brisa noturna que vem do Rio. Ao longe Nelson Gonçalves interpreta “Escultura” num serviço de alto falantes de um lugar indefinido.

No dia seguinte irei à feira comprar passarinho. Às 10 horas sentarei na balaustrada do cais e esperarei a lancha azul e branca. A bordo virá meu pai depois do expediente no ambulatório da fabrica da Passagem na margem oposta. Com ele me abraçarei “até me sentir seguro”. Com ele voltarei pra casa e irei cavar buracos no quintal na esperança de chegar ao Japão. Sonhos “topográficos” de menino. No fim da tarde verei o sol amarelo se afogar no outro lado do rio e me alegrarei ao ver brotar do chão da praça o antigo parque de diversões onde brincarei até não mais poder. Cansado dormirei no meu quarto de três portas gigantes por onde na calada da noite, entrarão os fantasmas que eu temia e que jamais vieram.Com eles trocarei idéias sobre a eternidade. Ao amanhecer irão embora com medo sol.

Minha mãe me acordará com uma toalha e um sabonete Eucalol. No café manga rosa recém colhida e banana amassada com Farroz. Pego minha raquete BocklaFlex com cordas de nylon, uma caixa de bolas Mercur e subo até o Penedo Tênis Clube jogar com meus amigos na quadra de saibro. Mais tarde sessão de cowboy no Cine Penedo. Roy Rogers, Rocky Lane, Rex Allen, alem de um monte de índios, bandidos e mocinhas.

Já a noite irei a missa da Catedral e farei parte do coral. “O senhor é meu pastor nada me faltará…” Na saída meus amigos me convocarão para uma seresta na praça junto ao coreto. Pegarei meu violão Giannini , um Tan-Tan e um pandeiro e viajaremos de Altemar Dutra a Cartola com uma pequena passada por Renato e seus Blue Caps. No auge da cantoria meu pai virá me chamar. O Dono do tempo está estação e mandou avisar que eu tenho mais 30 minutos no passado. Descemos de imediato e o encontramos olhando o rio do mirante da Rocheira. Meu pai fala com ele para aguardar mais um pouco, antes de retornar seu filho para o futuro, mas não tem acordo. Argumenta que pra se manter alguém no passado exige um grande dispêndio de energia. Meu pai rebate citando Einstein e a teoria da relatividade. O dono do tempo se irrita e diz não tem tempo para ficar dando explicações. Meu pai fica de bate-boca com o dono do tempo na frente da catedral:

– Deixe o rapaz ficar mais um pouco!
– Mas ele já tem 59 anos!
– Sim, é verdade, mas não nesse momento!…
– Dou mais 5 minutos… – fecha o “Tempo”

Irritado se dirige para a Estação. Eu e meu pai descemos a ladeira do Convento até nossa velha casa. Vou ao janelão dos fundos e de lá vejo o Senhor do Bonfim no morro do Oiteiro. A lua, quase cheia, ressalta o branco do Cristo que parece flutuar no espaço. Sinto o calor do abraço do meu pai. Cochilo olhando os meus passados nas paredes da velha casa. Já estou viajando para o presente.

Abro os olhos e revejo o oceano de concreto, luzes e antenas. Outro airbus pisca ao longe, agora em sentido contrario. A abelha já levou seu própolis pra casa mas deixou um rastro de mel na flor da jardineira. No ar permanece o ronco dessa bela metrópole que me acolheu em seu seio e me deu tudo que tenho e sou. Apago a madrugada e adormeço em paz. Amanhã tem exames…


*Dedico o texto a um velho médico, meio músico, meio poeta Luiz Peixoto Galvão, meu saudoso pai.