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Um Romano Convertido

Folder da Festa do Bom Jesus dos Navegantes de 2011 traz 'inovações'

Convencionou-se designar de romano, do ponto de vista histórico, ao cidadão nascido em Roma. Na Roma dos Césares, bem entendido. E não apenas nascido, mas pertencente à casta dos nobres – perfeitamente entrosado, portanto, à cultura, hábitos e tradições da cidade. Ser um romano autêntico, na pura essência da palavra, era algo realmente honroso. Além do status que a nominação trazia a quem a ostentava, significava um estado de espírito. Um estado de espírito diferente dos demais mortais. Roma, além do poder político, militar, econômico, era uma potência nas artes, nas ciências, no direito, na filosofia, na oratória, só rivalizando na excelência de tal patrimônio com a cultura helênica, a dos gregos, outro potentado a espalhar pelo mundo a riqueza do seu saber, seus extraordinários conhecimentos de matemática, engenharia, aritmética, geometria, filosofia, medicina, arquitetura…

Aliado a todo esse contexto, Roma ainda impunha ao mundo seu modo de guerrear, representado por uma máquina militar de causar inveja e derrotas a um número incontável de povos espalhados pelo mundo conhecido de então. Roma era disciplina, estratégia, tecnologia, logística, comandantes extremamente capacitados e soldados bem armados, treinados, alimentados e incentivados a vitórias sempre crescentes, tendo a esperá-los boa parte dos despojos de guerra. Era uma equação perfeita tanto para a casta, sempre a se beneficiar dos frutos desse domínio absoluto sobre outros povos, como para a soldadesca – também a prosperar por conta dessa política expansionista romana. Diante de quadro tão favorável, fica difícil imaginar na penetração de outra cultura que viesse quebrar, ou no mínimo, por em risco uma concepção tão arraigada de vida, de governo, de dominação sobre outros povos.

Entretanto, como a sombra do sol que não agride, porém se impõe, o cristianismo foi se internando nos territórios romanos a partir da Judéia, da Palestina e regiões subjacentes – quebrando, paulatinamente, a espinha dorsal do crer, do viver, do pensar, do guerrear romano. Um dos maiores exemplos que a História nos aponta nesse sentido é a conversão de Publius Lentulus, uma das grandes personalidades de Roma àquele tempo. Segundo antigas narrações, Publius era senador no exato momento em que Jesus Cristo divulgava seu Evangelho, uma concepção intelectual, espiritual e existencial diametralmente oposta às convicções romanas. Diante da crescente crise entre a Coroa e o Senado – este, vendo-se sem informações confiáveis nem elementos para entender o fenômeno Cristo – decidiu enviar Publius a Palestina para investigar anonimamente aquele que se dizia Filho de Deus e a Luz do Mundo.

Para um autêntico romano aquelas eram palavras ininteligíveis. Para Roma, a questão residia no poder de convencimento contido no discurso de Jesus, algo realmente preocupante para um governo que se alimentava do domínio exercido sobre outros povos. Publius assistiu ao Sermão do Monte (no qual Jesus realçou as bem-aventuranças do Reino de Deus) e nunca mais foi o mesmo. Sem saber, voltou a Roma meio romano, meio cristão. No relatório ao Senado, diz que Jesus falava de coisas muito sábias, mas não entendia, como romano, quando Jesus dizia que “todos os homens são iguais perante Deus”. Que Deus? O que Jesus pretendia com tais palavras, indagava para si mesmo e externava para seus pares. Realmente, para um romano, era difícil decifrar tal enigma. Racionalmente agia assim; porém, inconscientemente, o discurso de Jesus, diante da dominadora realidade romana, o incomodava.

Na sequência dos fatos, total mudança de vida. Publius converteu-se e passou a defender o cristianismo, além de proteger e abrigar cristãos perseguidos. Mais: teve sua rotina doméstica radicalmente alterada pela conversão da esposa, Lívia. Ela, vivendo intensamente a essência da pregação cristã, libertou todos os escravos caseiros, principalmente a dama de companhia, a quem passou a tratar como irmã. Foi um escândalo! Pela dignidade e imagem popular, Publius não foi preso e sim a ex-escrava de sua mulher. Não contavam com a atitude de Lívia. Vendo a ex-escrava ser levada, afirmou que iria com ela. O capitão da guarda não teve outro jeito senão levá-la também. Lívia foi encarcerada e, posteriormente, sacrificada no Coliseu – aos leões. De Publius nunca mais se ouviu falar. Foi encoberto pela poeira da História, porém, com certeza, carregando no íntimo a palavra que, no monte, de Jesus recebera.