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Tragédia Caipira

Com frequência ficamos a imaginar, sem chegarmos a uma convincente conclusão, se livremente moldamos o nosso destino ou, julgando-nos livres, não passamos de seres determinados pelo seu inalterável curso. Bate-nos essa curiosidade quando alguém, aparentemente sem grande esforço consegue louros da vitória ou quando portadora de uma conduta reservada e respeitosa, passa a trilhar um comportamento oposto. A nossa personagem encaixa-se perfeitamente nesse exemplo.

Celestina, como acontece com a índole de cada um de nós, trazia dentro de si a vaidade como traço marcante da sua personalidade. Era também uma empreendedora. Oriunda da zona rural, filha de pequenos agricultores, cursou até a sexta série. Aos vinte anos já estava casada.

Seus dotes físicos estavam um pouco abaixo da média. De estatura média, clara, ligeiramente esguia, nariz quase chato, cabelos castanhos e compridos, estirados artificialmente, era um produto típico da nossa miscigenação. No que tange ao temperamento, um tanto extrovertido. Apesar de não ter um rosto bonito, não dava para ser classificada de feia. Essa deficiência era compensada com atavios próprios da feminilidade, mesmo que fugissem, no início, da linha dos que sabem da arte de criar a beleza da mulher. Veio a melhorar com o tempo.

 Sua vaidade, necessária até certo ponto para estimular a ambição e ver a consecução de seus objetivos, somente seria possível através do dinheiro. Não pretendia, tão-só, ater-se à sua aparência pessoal. Desempregada, conseguiu, através de terceiros, ser recepcionista de um consultório médico, trabalho que requer boa aparência, exigência compatível com o seu gosto pela exibição. Seus primeiros vencimentos tiveram a finalidade de melhorar seu visual, o que de fato aconteceu, atingindo requintes de bom gosto.

As exigências da vaidade são múltiplas e suas aspirações estão no superlativo. Se possível fosse, gostaria de ter o mundo a seus pés e ser o número um em tudo que se possa imaginar. Na impossibilidade de atingir o ápice de seus desejos, o vaidoso, que se contenta acima de tudo em aparecer, procura ao menos alcançar certos bens que a sociedade convencionalmente indica como sinal dos que atingiram à nata dos bem sucedidos. O pequeno salto inicial deu-se com a compra de uma moto, financiada em um ano. Não teve propriamente o timbre da vaidade, mas da necessidade, vez que serviu tanto para se dirigir ao trabalho, quanto para se deslocar para os povoados e vender de porta em porta produtos domésticos e beleza feminina. Foi uma iniciativa que deu bons resultados, aumentando em muito a renda familiar.

Já não era mais uma pobre coitada a depender do transporte coletivo. Era preciso dar mais um pulo entre tantos que caracterizam a insaciabilidade de uma vida em permamente ascenção. Começou a frequentar uma autoescola. Um ano depois adquiriu um carro com três anos de uso. Foi o seu maior deslumbramento. Tão grande foi a sua satisfação que parecia não caber dentro do carro. Que seus amigos, vizinhos e as pessoas em geral percebessem o seu sucesso. Era o contentamento em forma de gente.

Sua atividade mercantil de porta em porta, aos sábados e domingos, crescia a todo vapor. Reformou a casa com a assistência de um arquiteto para oferecer-lhe comodidade e beleza. Trocou o carro usado por um zero quilômetro. Naturalmente que isso não a transformou em uma nova milionária. Imatura e psicologicamente desestruturada para continuar a alçar voos cada vez mais altos, não precisou chegar tão longe para perder o juízo, como acontece com muitos que conseguem, fácil e rapidamente, acumular grande fortuna. O desejo de ostentar-se impeliu-a a gastar com tudo que pudesse chamar a atenção das pessoas. Até sua maneira de vestir-se, anteriormente discreta, passou a ser sensualmente provocante. Houve também uma guinada em seu comportamento que de rotineiro de casa para o trabalho, tornou-se frequentadora das noites.

A vaidade, estímulo de um passageiro triunfo, foi também a causa prematura da sua morte. Perdida no emaranhado de fúteis caprichos, o incontrolável exibicionismo resultou numa pertinaz perdulária. Despreocupação que talvez tivesse causa na ausência de filhos, sua maior frustração. Seu marido, por outro lado, apagado e acomodado, era um personagem estéril sob todos os aspectos.

Sua mudança de comportamento foi inspirado na solteira Ifigência, amiga que se gabava liberal, cima do comportamento convencional, frequentadora de bares e festinhas, sempre desacompanhada do sexo oposto. Não queria o relacionamento único, como se fosse namorado, mas variado, sem compromisso. Celestina estava disposta a trilhar o mesmo caminho. Sentadas a sós, não era difícil que logo aparecessem os garanhões que podiam sentar-se à mesa se gozassem de simpatia. As frivolidades que conversavam eram temperadas com a bebida. Espantada a timidez e naturalmente acesa a chama do desejo sexual, tinha no motel o ápice da noitada. Essas orgias perduraram por quase dois anos. Até quando ficaria impune Celestina de seus desatinos?

Castigos e recompensas fazem parte da lei natural que resulta das boas e más ações. Desconhecia que iria pagar um alto preço pelo seu desregramento. Seu marido, mesmo com toda patetice, não era imune ao ridículo perante a opinião pública. Tornou-se notória sua luxúria. Não existe situação mais propícia para vicejar o mal, o surgimento dos maus conselheiros, falsos moralistas que acham que a honra manchada deve ser lavada com sangue. Sentindo-se ferido na sua fina camada de orgulho, arquitetava um plano de vingança. Sabia, no entanto, que não teria coragem para executá-lo. Reconhecia nela toda sua dependência. Era ela que dirigia e criava as iniciativas. A verdade era que ele, autêntico pervertido, gozava com o picante sentimento do amor traído. Não havia lugar para se falar em orgulho ou honra a ser reparada.

O destino o poupou de encenar uma descabida vingança. Estava livre da ditadura da opinião pública. Bêbada e dominada pelo sono depois de uma de suas noitadas, perdeu o controle da direção. O carro capotou por diversas vezes. Não suportou as fortes contusões, falecendo no local.

Perdida estava a árvore que lhe dava sombra e frutos. Passou a não suportar sua ausência. Desprezou-se. Perdeu o apetite e a vontade de viver. Sujo, maltrapilho e subnutrido, obteve a consideração da morte.

Igual a tantas outras do gênero, a presente tragédia, ocorrida de fato, não chamaria atenção não fosse o histórico de vida do casal que na sua simplicidade caipira, era de se acreditar na total impossibilidade de que uma radical mudança de comportamento fosse capaz de conduzir à fatalidade.