Não sabemos precisar o ano. Foi na década de setenta que a família de TICOTICO, deixou a zona rural do nosso estado, rumo a Maceió. Não foi uma decisão espontânea, mas de necessidade pela sobrevivência, tangida que fora pela seca e o desespero da fome .
Lá chegando, sem abrigo, teve a rua como moradia. Aos poucos, com sacrifício e a fibra do retirante, a família os pouco foi construindo um casebre á margem da lagoa do Mundaú. TICOTICO, o mais velho dos três irmãos, com uns quatorzes anos, após muita frustração, conseguiu atrair a simpatia de uma senhora bem vestida. Era Dona MATILDE, mulher do juiz MIRAFLORES que mais tarde viria tornar-se desembarcador.
TICOTICO, temperamento alegre e falador, era de uma cordialidade um tanto artificial, qualidade que mais tarde iria predispô-lo ao comportamento servil e bajulador. Talvez tenha sido resultado de uma observação ou convencimento pelo instinto de que o caminho mais suave e seguro para vencer quando se vive á sombra de um vaidoso investido de autoridade, é saber polir a sua vaidade. Com essa característica, nenhuma dúvida existiria para conquistar a simpatia do Dr. MIRAFLORES que transpirava vaidade por todos os poros.
Executava serviços gerais de natureza doméstica, especialmente com os cuidados do jardim. Já considerado um membro a família, desfrutando total confiança, foi aconselhado a dar continuidade aos estudos. Era alfabetizado. Depois de alguns anos, concluiu o segundo grau. Vitória alcançada, estava convencido de que o seu sacrifício seria recompensado com um emprego decente, fora da esfera doméstica.
Coincidentemente, um após a sua formatura MIRAFLORES foi nomeado desembargador do Tribunal de Justiça. Aconteceu que a expectativa de TICOTICO não se consumou. Dos serviços domésticos passou a ser, na verdadeira expressão, um capacho do patrão acompanhando-o ao Tribunal de Justiça. Seu trabalho agora era carregar pilhas de livros nos braços até o plenário das audiências. Estava encarregado de por a toga no patrão ou tira-la quando necessário.
A entrada de MIRAFLORES no plenário lembrava um pequeno séquito imperial. Sua pompa e vaidade se estivessem na ordem direta de seus conhecimentos jurídicos, seria uma sumidade de erudição. Infelizmente, além de se encontrarem na contramão dos conhecimentos, na mesma condição, encontravam-se seus princípios éticos que deveriam nortear sua nobre função. Era oriundo de uma família de políticos e costuma agir dentro das regras deturpadas da política.
O fato a seguir aconteceu de fato. Até parece que o destino quis pregar uma peça para ironizar o DR. MIRAFLORES, fazendo-o ver que a sua pompa e vaidade não o isentavam da vil condição humana. Para fazê-lo entender, como afirmou o filósofo francês Montain, que no mais alto trono do mundo o homem se senta sobre o trazeiro.
O lustre desembarcador era sessentão. É uma fase na qual o intestino torna-se barulhento, face a uma generosa produção de gases. O intestino torna-se um verdadeiro biodigestor. Aberta a válvula de emergência, sai de forma incontido uma batucada de cadenciados flatos. Em local inesperado, Miraflores foi vitima dessa incontrolável pressão. Entre outras pessoas, subia de elevador com destino ao seu gabinete de trabalho. Sem menos esperar, soltou um sonoro flato que chamou a atenção de todos. Permaneceu com a fisionomia inalterada, como se nada tivesse acontecido. Em sentido contrário, TICOTICO, para salvar do vexame o desembarcador peidão, assumiu a autoria, saindo-se com a seguinte justificativa; “pessoal, fui eu. Desculpe-me. Foi sem querer”. Essa defesa servil não escondeu a culpa do autor. Todos viram de onde partiu o som, vergonhoso. Como pode ter acontecido isso, justamente com o DR. MIRAFLORES, pessoa importante e educado, quase lembrando um semideus, pensava consigo o TICOTICO.
O elevador chegou ao andar indicado. No itinerário até o gabinete, acreditava TICOTICO que ai chegando seria cumulado com caloroso elogio e gratidão por tê-lo livrado de situação deveras incômoda e vergonhosa. Não aconteceu o esperado. MIRAFLORES chegou calado e indiferente. Não podia acreditar no seu mutismo e ingratidão. Desconhecia TICOTICO que os poderosos não suportam confessar suas fraquezas aos seus subordinados.
Talvez o doutor esteja certo em não tecer comentários sobre o ocorrido. O descuido de um flato envergonha, mas não desmoraliza. .Afinal de contas, a culpa é da natureza que permite semelhante aberração no homem que, no pedestal da sua espiritualidade e inteligência, tem de conviver com as repugnantes funções animalescas.
A pesar dessa correta observação sobre a natureza humana que tem de conviver com o sublime e o degradante, não foi capaz de redimi-lo da sua indigna subserviência, tão abjeta quanto o pum do desembargador.