E estou a flutuar e a girar, há bilhões de anos, na solidão do espaço sem fim. Sou refém da lei da gravidade e como tal uma escrava do sol que me impede de conhecer novos mundos, de circular periodicamente novas estrelas. A monotonia do meu itinerário é semelhante ao castigo do mitológico Sísifo, condenado a rolar uma enorme pedra até o cume de uma alta montanha e, lá chegando, vê-la desabar montanha abaixo, tendo de repetir eternamente o mesmo trabalho. Minha punição é contornar anualmente o sol, tendo como único consolo o privilégio de ouvir a música do espaço sideral, inaudível ao homem.
Confesso que apesar dos pesares, sinto-me honrada de hospedar sobre minhas costas o bicho homem, a síntese do bem e do mal. Saído das minhas entranhas, tenho de suportá-lo em seus desatinos e travessuras. Como tudo se mede pela escala da teoria da relatividade, não passo de uma anã perto de outros corpos celestes de colossal tamanho. Para compensar-me da ausência de tamanha vastidão, tenho a graça e a desgraça de receber a inteligência, o mais extraordinário dom da criação sem a qual toda a obra divina seria inexistente pela ausência de uma consciência capaz de apreendê-la e dar-lhe vida.
Não posso saber o momento do meu nascimento, mas segundo a avaliação do bicho homem, tenho em torno de cinco bilhões de anos e outros tantos para viver. Quando o sol estiver em sua fase agonizante, expandindo-se até se transformar numa imensa esfera vermelha, serei devorada ou na melhor das hipóteses, incinerada. Muito antes dessa data fatídica, a vida em mim há muito tempo já se extinguiu. Como qualquer vida, a minha também é certa e insegura. Oriundo do espaço, existem umas dez causas que podem destruir-me por completo.
As duas mais prováveis, podendo acontecer hoje ou daqui a milhões de anos, é sofrer o gigantesco impacto de um cometa ou asteroide. Não sei se entre as dez possibilidades enumeradas pelos físicos e astrônomos, está e de ser sugada por um buraco negro. Dificilmente acontecerá, entretanto, se viesse ocorrer, seria um fim tragicamente cômico. Submetida a uma estupenda força da gravidade, o meu peso não obstante permanecesse o mesmo, meu tamanho ficaria reduzido ao de uma bola de tênis. Não dá para acreditar. O senso comum de ver as coisas, diante de fenômeno tão extraordinário, induz o convencimento de que o mundo é magnífico e não menos produto do ilusionismo. Mas não bastassem as causas acima, o homem com o poderio atômico que tem armazenado poderá, sob o império da insensatez e da loucura, destruir toda a vida. Eis a visão da minha desgraça, fruto da inteligência.
Independentemente desses holocaustos que acontecerão mais cedo ou mais tarde, sinto desde já a sensação de uma morte lenta, tendo como causa lesões ao meu corpo e artérias em nome de um crescimento econômico selvagem e irracional. Esse suicídio lento se traduz especialmente na poluição do solo, dos rios e mares, da atmosfera, da destruição das florestas, a emissão de gases como o dióxido de carbono que gera o efeito estufa que causa o meu aquecimento. Acontece que não existe uma unanimidade de que esteja aquecendo ou que o homem, através das ações acima referidas, possa ser o responsável por mudanças climáticas que venham ocorrer. A verdade é que nada está parado e a natureza está sempre se transformando. Já não sofri glaciações no passado? Eu posso dizer que sinto as dores das lesões em referência, mas ignoro se serão a mim letais, assim como não acredito que a divergência a esse respeito será um dia dirimido. Outrossim, embora o homem possa praticar os mais variados malefícios, sabe também contorná-los.
Quero agora deixar a horizontal das preocupações do solo e voar na verticalidade da imaginação nas alturas, para fazer a mais inquietante das perguntas: existe fora de mim vida inteligente? A astronomia vem descobrindo planetas em outras estrelas, alguns de enorme tamanho, de constituição gasosa. Mas o grande objetivo, a grande surpresa será encontrar o primeiro que tenha as minhas características, isto é, que contenha água, a principal condição para a existência da vida, que seja rochoso e que orbite a sua estrela a uma distância semelhante a minha em relação ao sol, ou seja, não tão perto que cause evaporação de toda água ou tão longe que a congele.
Mas será que diante da diversidade das condições existentes no universo, a vida só pode surgir dentro dos meus requisitos? Por outro lado, se a composição química que forma os corpos celestes são idênticos ou iguais, por que a que existe em mim não pode acontecer alhures? A lógica, coadjuvada com a probabilidade matemática em face de um universo quase infinito, facilmente me convence de que milhares de vidas inteligentes existem. Seria pretensão demais admitir que somente em mim ela exista, quando sabemos que o cosmo é composto por milhões de galáxias, cada qual com milhões e bilhões de estrelas e planetas. Por outro lado, dentro dessa constatação e à luz da concepção do homem que acha haver em tudo uma finalidade, como explicar que o criador, admitindo-se a sua existência, tenha escolhido apenas eu, um grão de areia, seja depositária da vida inteligente?
Enfim, não fosse suficiente todo esse mistério, há o mais absoluto dos mistérios: o universo é fruto de uma inteligência divina que tudo ordena segundo a sua vontade ou a criação e a ordem universal são imanentes a si mesmas? Embora a complexidade da formação da vida e seu funcionamento apontem para uma mão divina, por outro lado, a inalterabilidade, o mecanismo, das leis naturais parece afastar a interferência de uma vontade consciente, isto é, volúvel, podendo a qualquer momento mudar o mecanismo das leis que regem o cosmo. E agora, como a verdade é única, qual das duas hipóteses é a verdadeira? Quem saberá? Isso não impede, no entanto, sei muito bem, que o bicho homem continue a mergulhar nos mistérios da criação, o mais instigante exercício mental, e mesmo que quase nada se possa visualizar em suas águas turvas, a inquietação demoníaca da curiosidade não o deixará desistir de aprofundar-se na turbulência e escuridão de suas águas.