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Sonho Natalino que Salvou um Avarento

Conheci Catulo Mão-de-Vaca, como era conhecido pela sua notória sovinice desde criança. Sempre estudamos juntos. Compartilhávamos das mesmas farras e brincadeiras. Mesmo depois de casados mantivemos o costume de uma cervejada nos fins de semana. Como de hábito, dificilmente metia a mão no bolso para pagar.

Não fosse por uma convivência antiga, sem dúvida alguma não faria parte das minhas amizades. Totalmente o oposto da sua natureza, tenho horror a avareza. Acontece que tinha um outro atenuante, era alegre e comunicativo.

Essa diferença levou-nos a outra no campo profissional. Enquanto minha pretensão, limitada no plano econômico, não ía além do suficiente a uma relativa segurança, Catulo aspirava atingir as alturas, se possível o mundo em suas mãos. Infelizmente, certamente pela carência de sorte ou competência para o negócio, não passou de um medíocre negociante.

Sob o ponto de vista religioso, era católico praticante, mas na prática de vida fazia parte do grande contingente de fariseus. Acreditava nos mandamentos, que ficavam restritos à teoria. A prática do bem ao próximo era bom de ver, mas difícil de fazer. Se acreditava no céu e na salvação após a morte, bastava cumprir as formalidades do culto. Daí porque não perdia as missas, fazendo-se participativo e compenetrado em suas orações. Uma particularidade que chamava a atenção, cômica por sinal, nunca passava em frente a uma igreja, imagem sagrada ou de uma cruz, sem se benzer. Com esse salamaleque, achava ser um autêntico católico. A avareza, decididamente, obrigava-o a inverter a essência da prática cristã, o amor e o bem ao próximo. Muito ônus, não obstante acreditar indispensável para alcançar o tão desejado bônus celestial.

Num dos últimos encontros que tivemos, fiquei incrédulo com a narrativa de um sonho que tivera. O que chamou a minha atenção, além dos mínimos detalhes, foi o seu estado de espírito que parecia demonstrar o prenúncio de uma sentença de morte. Antes da narrativa, sentiu a necessidade de fazer um desabafo e autocrítica da sua condição de cristão. Disse que acreditava em Cristo como Filho de Deus e também na sua mensagem de salvação.

O sonho fê-lo perceber que a dureza do seu coração o distanciava do verdadeiro cristão. Que estava convencido que o homem, muitas vezes, carrega dentro de si, por quase toda a vida, um erro que, não obstante toda evidência, só tardiamente vem a percebê-lo. É como se estivesse a sofrer de uma cegueira causada pela ofuscante claridade. Como você sabe, não gasto com facilidade e por isso nunca fui dado a fazer caridade. Nem as quengas escapavam do meu calote. Talvez tenha sido o maior checheiro dos cabarés. O sonho está sendo um marco divisor em sua vida. Rememorando a sombra do seu passado, dominado pelo materialismo, sentia que estava seguro tratar-se de uma mensagem para mostrar-lhe o verdadeiro caminho do bom cristão. Que iria por em prática, embora não tivesse entendido o significado de algumas coisas, razão porque fez questão de contar-me.

Fiquei boquiaberto com o que acabara de ouvir. Não acreditei que fosse capaz de fazer considerações que me pareciam bem distantes da sua formação. A vida é sempre cheia de surpresas.

Eis como se desenrolou. Dirigia-se a uma agência de turismo. Lá chegando, em vez de comprar uma passagem para determinado lugar, alugou um tapete voador. Viu-se de repente puxando uma carroça dentro da qual se encontravam o tapete e brinquedos. Era véspera de Natal. Chegou a uma vila muito pobre. Algumas crianças se aproximaram e em seguida seus pais. Começou a distribuir os presentes. Era tudo sorrisos e contentamento que nele sentia refletir-se em dobro. Nunca imaginara que a bondade pudesse proporcionar tanta alegria. Sentia-se transformado em um outro Catulo. Imaginou que existe dentro de todos nós uma duplicidade de personalidade, antípodas entre si. Estava morrendo o Catulo avarento e surgia o do desprendimento. Não se conteve em apenas distribuir os presentes. Fez questão de abraçar a todos os presentes, transmitindo aos adultos uma mensagem de otimismo e esperança.

Despediu-se e afastou-se. Mais adiante abriu o tapete e sentou-se no centro. Obedecendo a uma ordem, o tapete mágico alça voo para as alturas. Bem no alto, silêncio total e paz de espírito, vislumbrava, boquiaberto, a beleza em todas as direções. Ganhava altura cada vez mais. Desejou, no fundo, perder-se na imensidão do universo. Surpreso, ouve ao longe a voz de um coral gregoriano a interpretar um comovente canto sacro. Sentiu, na brevidade daquele momento, estar usufruindo a graça do paraíso. O peito parecia que ía explodir de tanta ventura e contentamento. Sente que não pode conter o choro e subitamente desperta com os olhos banhados em lágrimas.

 Foi difícil acreditar que um sonho, mesmo com toda a sua aparência real, fosse capaz de transformar radicalmente uma personalidade. Aconteceu porque Catulo acreditou-o profético, que algum espírito amigo estava intercedendo para salvá-lo. Daí porque houve uma mudança na rotina e maneira de ser. Os negócios ficaram um tanto de lado. Tornou-se mais assídua sua frequência à igreja. Passou a contribuir com a espórtula nas missas. Na contramão do deslumbramento do sonho, a alegria de viver desapareceu. Era um Catulo cheio de culpas e arrependimento. Esse baixo astral, partindo da sua crença de que os prazeres são um obstáculo à purificação da alma, minou-lhe a resistência orgânica. Contraiu uma gripe que degenerou em pneumonia, levando-o à morte.

O sonho que acreditou iria conduzi-lo ao céu, matou-o. A sua transformação no Catulo do bem ao próximo, francamente arrependido, ajudou a São Pedro, após uma avaliação completa, permitir a sua entrada no céu.