A organização do Programa Nacional de Imunizações (PNI) dava seus primeiros passos após sua criação, em 1973, quando o Brasil enfrentou uma de suas mais graves crises de saúde pública do século 20, a epidemia de meningite meningocócica, com 67 mil casos entre 1971 e 1976, sendo 40 mil apenas no estado de São Paulo. Doença grave e imunoprevenível, a meningite bacteriana pode causar infecções generalizadas, as meningococcemias, que têm alta letalidade e deixam sequelas permanentes como amputações de membros.
Hoje integrante da Comissão Permanente de Assessoramento em Imunizações do Estado de São Paulo, Guido Levi já era médico na época e lembra que a doença provocou cenas difíceis de esquecer.
“Foi uma época terrível. O Hospital Emílio Ribas, que era o principal hospital de isolamento em São Paulo, chegou a ter crianças internadas no pátio. Um hospital que normalmente tinha 180, 200 leitos ocupados, chegou a ter mais de mil crianças. Como não cabiam mais nas enfermarias, ficaram no estacionamento, no pátio. Felizmente, isso foi controlado. Hoje, temos um controle dessa doença com a vacinação.”
A situação se agravou com a censura da ditadura militar, que tentou abafar a gravidade da epidemia e só começou a agir quando não havia mais como controlá-la.
“Em determinado momento não deu mais para ocultar, porque a coisa foi explosiva. Mas se tentou ocultar. Isso ocorreu historicamente com muitas doenças, desde a antiguidade. Hoje, felizmente, a população está informada da existência da vacina e o número de casos caiu demais”, conta Levi.
Autoritarismo criminoso
Pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz e presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), o historiador Carlos Fidelis Ponte classifica como autoritária, criminosa e burra a tentativa de censura por parte da ditadura militar a uma doença que precisava ser contida por medidas preventivas.
“Era uma época em que se falava do Brasil grande, Brasil potência, do Brasil do futuro, desenvolvido. E o Geisel ainda tinha força, não estava na mesma crise que o Figueiredo. Então, eles procuraram censurar a existência de uma epidemia em São Paulo. Essa foi a coisa mais burra que existiu, porque, quando você censura, você censura inclusive para a máquina estatal. A máquina que deveria combater também não sabe da existência. E a população não se prepara. Isso faz com que a doença tenha campo livre, aumente o número de casos e o raio de ação. Foi uma tentativa autoritária, burra e criminosa, porque fez com que a doença se expandisse mais rapidamente e atingisse um número maior de pessoas.”
Naquela época, o Brasil não produzia a vacina contra a doença, e, quando não foi possível mais esconder a epidemia, foi preciso comprar às pressas não um número de doses para conter a expansão de casos em São Paulo, mas uma quantidade que pudesse enfrentar um surto já de proporções nacionais.
“O Brasil precisou importar uma quantidade de vacinas que não existia em produção no mundo. Os franceses precisaram construir uma nova fábrica para atender à demanda do Brasil.”
O economista Vinícius da Fonseca, na época na Secretaria de Planejamento (Seplan), conseguiu nessa negociação com o Instituto Pasteur, na França, a inclusão da transferência de tecnologia da vacina contra o meningococo. Foi a partir disso que, em 1976, foi criado o Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fiocruz), com Fonseca na presidência da Fiocruz, para incorporar e nacionalizar tecnologias existentes no mundo em prol do PNI e, futuramente, do Sistema Único de Saúde (SUS). Em 2023, o Programa Nacional de Imunizações completa 50 anos.
“Ele é o primeiro a usar o poder de compra do Estado para gerar emprego, desenvolvimento científico e reduzir a dependência. Isso inaugurou uma estratégia política que alimentou Bio-Manguinhos durante anos e alimenta até hoje”, destaca o historiador.
A produção nacional começou a chegar aos brasileiros em 1977, ano em que os casos se normalizaram, em parte pela vacinação e em parte pelo grande número de infectados pela bactéria. Hoje, a meningite meningocócica é considerada uma doença controlada pela vacinação.
Para crianças e adolescentes
Disponível no PNI, a vacina meningocócica C conjugada deve ser administrada com duas doses, aos 3 e aos 5 meses de idade, e requer ainda uma dose de reforço aos 12 meses. O Sistema Único de Saúde oferece ainda a vacina meningocócica ACWY a adolescentes de 11 a 14 anos de idade.
O Brasil teve uma queda expressiva no número de casos da doença desde que adotou a vacina no SUS, em 2010. A queda da cobertura nos últimos anos, porém, traz um alerta, porque a doença não parou de circular.
A meningite é uma doença causada pela inflamação das meninges, membranas que envolvem o cérebro e a medula espinhal, o que se dá por meio da infecção causada principalmente por vírus ou bactérias.
Ao todo, o SUS oferece sete vacinas contra a meningite, que é considerada uma doença endêmica no país. Isso significa que são esperados casos ao longo de todo o ano, com a ocorrência de surtos e epidemias ocasionais. Segundo o Ministério da Saúde, a ocorrência das meningites bacterianas é mais comum no outono e no inverno, e a das virais, na primavera e no verão.
Bactéria agressiva
A bactéria meningococo C é considerada agressiva e pode levar à morte em menos de 24 horas, mesmo quando diagnosticada e tratada. Nesses casos mais agudos, a infecção pode ir para o sangue e se tornar generalizada, causando a chamada meningococcemia.
A diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações, Isabela Ballalai, explica que a meningite meningocócica está entre as mais graves, por ser uma doença que chega a causar a morte de 20% dos pacientes e a deixar um em cada cinco com sequelas importantes, como amputações de braços e pernas e danos neurológicos irreversíveis.
“As meningites por bactérias são as mais graves, e as duas bactérias que mais causam são o meningococo e o pneumococo. A meningocócica é a mais comum no país, mas, nesse um ano após a pior fase da pandemia, a gente está vendo aumentar a pneumocócica”, alertou. “É uma doença muito grave, que, quando não mata, pode deixar sequelas para o resto da vida.”
Isabela Ballalai ressalta que a vacinação de bebês contra a meningite não pode ser deixada para depois, porque a imunização é programada para o primeiro ano de vida justamente por ser o momento de maior vulnerabilidade.
“A doença meningocócica acontece em qualquer idade, mas a incidência em crianças menores de 2 anos é muito mais alta que em adultos. E, proporcionalmente, há mais casos em crianças menores de 1 ano”, alerta ela. “As pessoas não deixam de se vacinar porque receberam fake news, elas deixam de se vacinar porque não perceberam o risco da doença. Elas acabam protelando, e isso leva a baixas coberturas.”
Prevenção
A vacinação contra a meningite deve começar ao nascer, com a vacina BCG, que protege contra formas graves da tuberculose, o que inclui a meningite tuberculosa.
A vacina pentavalente, prescrita para 2, 4 e 6 meses de idade, previne contra a meningite causada pelo Haemophilus influenzae sorotipo B, além de difteria, tétano, coqueluche e hepatite B.
Aos 2 meses de idade, os bebês também devem tomar a primeira dose da pneumocócica 10-valente, que requer ainda uma dose aos 4 meses de idade e um reforço ao completar o primeiro ano de vida. Essa vacina protege contra a meningite pneumocócica e contra pneumonias.
A vacina meningocócica C conjugada, que protege contra o sorotipo C do meningococo, deve ser aplicada aos 3, 5 e 12 meses idade. Nesse caso, a prevenção é contra a meningite meningocócica.
Já a meningocócica ACWY, contra o mesmo tipo de meningite, protege contra os sorotipos A, C, W e Y, e é recomendada para adolescentes de 11 a 14 anos de idade. A vacinação com a ACWY no país está em situação ainda pior que a da meningocócica C, com cobertura de apenas 57% em 2022, segundo o Ministério da Saúde.
A vacina pneumocócica 23-valente não faz parte do calendário infantil e é recomendada pelo Ministério da Saúde para toda a população indígena acima de 5 anos de idade e para a população com mais de 60 anos de idade abrigada em instituições de acolhimento.
A vacina pneumocócica 13-valente é aplicada apenas nos Centros de Referência para Imunobiológicos Especiais (CRIEs), e seu uso é recomendado para indivíduos com ao menos 5 anos de idade que vivem com HIV, pacientes oncológicos, transplantados de órgãos sólidos e transplantados de medula óssea.