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Shell e Basf são condenadas a pagar indenizações de mais de R$ 1 bilhão

A Justiça do Trabalho de Paulínia condenou as empresas Shell do Brasil e Basf S/A a custearem o tratamento médico de todos os ex-trabalhadores da unidade de fabricação de agrotóxicos no bairro Recanto dos Pássaros em Paulínia, desde a década de 70 até o ano de 2002, quando houve a interdição da planta. Os filhos de empregados, autônomos e terceirizados que nasceram durante ou após a prestação de serviços também são abrangidos pela decisão.

Segundo a sentença da juíza Maria Inês Corrêa de Cerqueira César Targa, da 2ª Vara do Trabalho de Paulínia, a cobertura médica deve abranger consultas, exames e todo o tipo de tratamento médico, nutricional, psicológico, fisioterapêutico e terapêutico, além de internações.

“A contaminação a que se expuseram os trabalhadores não ocorria, apenas, nos momentos em que se encontravam em seus postos de trabalho, mas em todo o período em que se encontravam no Recanto dos Pássaros, local onde foi instalado o parque fabril e hoje isolado. No início, no final da jornada, nos intervalos, no trânsito pela área externa do parque fabril, na utilização da água ofertada no local, a exposição aos contaminantes se mantinha e os trabalhadores não estavam, nestes momentos, utilizando equipamentos de proteção que, de qualquer forma, não os impedia de respirar o ar contaminado e de ingerir a água que lhes era ofertada. Não se pode, portanto, admitir a tese simplista da Shell de que a existência de substâncias tóxicas no corpo humano, por si só, não configura intoxicação”, afirma a juíza, “(…) e se não é certo afirmar que todos os trabalhadores desenvolverão doenças como o câncer, também não se pode afirmar de que doenças ficarão alijados. O fato já detectado é que, na população exposta aos contaminantes já descritos, a incidência de câncer é sobremaneira maior do que nas demais populações”.

Cada ex-trabalhador e cada filho de ex-trabalhador nascido durante ou depois da prestação de serviços deverá receber o montante de R$ 64.500, indenização que se refere à protelação do processo pelas empresas, no período compreendido entre a data da propositura da ação até 30 de setembro. Este valor será acrescido de juros e correção monetária a partir da sentença e de mais R$ 1.500 por mês caso não seja feito o reembolso mensal das despesas nos meses seguintes.

A Shell e a Basf têm 5 dias, a partir de 19 de agosto, para publicar um edital de convocação dos trabalhadores e descendentes abrangidos pela decisão nas duas maiores emissoras de TV do país, em duas oportunidades. Apenas a Basf deve divulgar o comunicado em 2 jornais de grande circulação em dois domingos, sob pena de multa diária de R$ 100 mil.

Após a publicação, os trabalhadores terão prazo de 90 dias, a partir de 30 de agosto, para apresentarem documentos comprovando a condição de ex-empregados das empresas Shell, Cyanamid ou Basf (sucessora da Cyanamid), ou de terceirizados ou autônomos que trabalharam na unidade fabril de Paulínia, independente do trânsito em julgado. Embora possam ser cadastrados trabalhadores de todo o país, o atendimento à saúde foi restringido à Região Metropolitana de Campinas e à cidade de São Paulo.

As empresas devem constituir um comitê gestor do pagamento da assistência médica até o dia 30 de setembro. Se descumprir a obrigação, as empresas devem pagar multa diária no valor de R$ 100 mil.

As empresas também foram condenadas ao pagamento de indenização por danos morais causados à coletividade no valor de R$ 622.200.000, reversível ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Na data da sentença, o valor com juros e correção já está na casa dos R$ 761 milhões.

De acordo com a juíza, as empresas deverão arcar, no total, com um custo aproximado de R$ 1 bilhão e 100 milhões de reais.

“A questão tratada nessas ações civis, portanto, é de ordem pública e interessa a sociedade porque demonstra a transgressão das rés a princípios assegurados pela Constituição Federal, mormente àqueles que dizem respeito à dignidade da pessoa humana, ao valor social do trabalho, ao direito à proteção ao meio ambiente do trabalho, à saúde e à vida”, atenta a juíza.

Mais de 1 mil ex-trabalhadores das empresas foram beneficiados com a sentença, além de outras centenas de familiares, também suscetíveis à contaminação. De todos os trabalhadores que tentam provar que foram expostos a substâncias contaminantes, ao menos 100 possuem ações individuais em trâmite na Justiça.

A juíza também proferiu sentença referente à ação ajuizada pelo Sindicato dos Químicos contra as empresas, que arbitra indenização de R$ 20 mil por trabalhador, por ano trabalhado, valor que deve ser corrigido e acrescido de juros e correção monetária.

A exposição de seres humanos aos contaminantes presentes no local da fábrica é há anos estudada e está vastamente documentada nos autos da ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) em 2007, juntamente com Associação de Combate aos Poluentes (ACPO), Associação dos Trabalhadores Expostos a Substâncias Químicas (Atesq) e Instituto Barão de Mauá de Defesa de Vítimas e Consumidores Contra Entes Poluidores e Maus Fornecedores.

O material foi produzido por instituições como Unicamp, MPT, Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça do Meio Ambiente, Ministério da Saúde, Cut, Cedec, Dieese, Unitrabalho e pela empresa holandesa Haskoning/IWACO – a pedido da própria Shell.

Em razão de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado perante o Ministério Público do Trabalho, o Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest) de Campinas examinou 69 ex-trabalhadores da Shell/Cyanamid/Basf e enviou um relatório, que foi juntado aos autos do inquérito, sobre os atendimentos realizados, cujo resultado apontou uma média de 6 diagnósticos por indivíduo analisado.

Dos 17 casos diagnosticados, 10, ou seja, 58,8% foram de neoplasia maligna, chamando atenção os cânceres de próstata e os de tireóide. Houve ainda um caso de síndrome mielodisplásica. Quanto às doenças endócrinas, o Cerest verificou que 67,9% dos diagnósticos foram dislipedimias somadas às doenças da glândula tireóide.

Dos 34 casos de doenças do aparelho circulatório, 21 foram casos de doenças hipertensivas. Dentre as doenças do aparelho digestivo, destacaram-se as doenças do fígado, além da ocorrência de casos de doença diverticular do cólon e um caso de metaplasia intestinal em esôfago. Em 30 casos houve predominância de Lesões por Esforços Repetitivos (LER), enquanto que 56 ex-trabalhadores apresentaram problemas sérios no aparelho gênito-urinário, com afecções da próstata, alterações de fertilidade e impotência sexual. Ainda houve exames em que o diagnóstico final não foi comprovado, mas apresentaram alterações.

“E o que é mais chocante (…) é que as empresas rés, notadamente a primeira delas (Shell), tinham pleno conhecimento, desde 1970, do dano causado pelos produtos por ela manipulados. A Shell, que teve a produção banida dos Estados Unidos, singelamente transferiu para Paulínia o parque fabril. E a Basf não foi mais cautelosa: sabedora da contaminação existente no local, que já havia sido denunciada e que já era discutida vastamente em Paulínia, ainda assim se instalou no mesmo sítio, que já sabia inadequado, expondo seus trabalhadores a patente risco”, conclui a sentença.

A Shell e a Basf podem recorrer da decisão no Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de Campinas.

Histórico resumido do caso Shell/Basf

No final da década de 70 a Shell instalou uma indústria química nas adjacências do bairro Recanto dos Pássaros, em Paulínia. Em 1992, ao vender os seus ativos para a multinacional Cyanamid, começou a ser discutida a contaminação ambiental produzida pela empresa na localidade, até que, por exigência da empresa compradora, a Shell contratou consultoria ambiental internacional que apurou a existência de contaminação do solo e dos lençóis freáticos de sua planta em Paulínia.

A Shell foi obrigada a realizar uma auto-denúncia da situação à Curadoria do Meio Ambiente de Paulínia, da qual resultou um termo de ajuste de conduta. No documento a empresa reconhece a contaminação do solo e das águas subterrâneas por produtos denominados aldrin, endrin e dieldrin, compostos por substâncias altamente cancerígenas – ainda foram levantadas contaminações por cromo, vanádio, zinco e óleo mineral em quantidades significativas.

Após os resultados toxicológicos, a agência ambiental entendeu que a água das proximidades da indústria não poderia mais ser utilizada, o que levou a Shell a adquirir todas as plantações de legumes e verduras das chácaras do entorno e a passar a fornecer água potável para as populações vizinhas, que utilizavam poços artesianos contaminados.

Mesmo nas áreas residenciais no entorno da empresa foram verificadas concentrações de metais pesados e pesticidas clorados (DDT e drins) no solo e em amostras de água subterrâneas. Constatou-se que os “drins” causam hepatotoxicidade e anomalias no sistema nervoso central.

Ademais, a Cyanamid foi adquirida pela Basf, que assumiu integralmente as atividades no complexo industrial de Paulínia e manteve a exposição dos trabalhadores aos riscos de contaminação até 2002, ano em que os auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) interditaram o local, de acordo com decisão tomada em audiência na sede do MPT. Apesar do recurso impetrado pela Basf, a interdição foi confirmada em decisão do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 2ª Região.

Em 2005, o Ministério da Saúde concluiu a avaliação das informações sobre a exposição aos trabalhadores das empresas Shell, Cyanamid e Basf a compostos químicos em Paulínia. O relatório final indicou o risco adicional aos expostos ao desenvolvimento de diversos tipos de doença.