O Ministério Público Federal (MPF) ingressou com ação civil pública contra a empresa Taquaril Mineração S.A. (Tamisa), para obrigá-la a solicitar anuência prévia do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) antes de realizar qualquer supressão vegetal na região da Serra do Curral, para a implantação do chamado Complexo Minerário Serra do Taquaril.
De acordo com o MPF, a anuência prévia do Ibama independe do licenciamento ambiental e deve ser expressamente solicitada pelo empreendedor sempre que sua atividade for executada em área de Mata Atlântica.
“O bioma Mata Atlântica é um patrimônio nacional, assim definido pela Constituição Federal, e é tão valioso ambientalmente, que conta com regramentos próprios: a Lei 11.428/2008 (chamada Lei da Mata Atlântica) e o Decreto 6.660/2008. É essa legislação que impõe a obrigatoriedade de anuência prévia do órgão ambiental federal para qualquer supressão vegetal nesse bioma, mas equivocadamente o órgão licenciador estadual dispensou tal obrigação com base em mero parecer, não vinculante para a Administração, o qual, por sua vez, fundamentou-se em analogias contrárias ao que determina a lei”, explica o procurador da República Carlos Bruno Ferreira da Silva, autor da ação.
O Complexo Minerário da Tamisa é uma atividade de altíssimo impacto ambiental, seja por sua magnitude, causando graves danos de várias ordens, seja pela própria localização do empreendimento, situado ao longo da Serra do Curral, monumento natural que, além de tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (Iphan), integra a Reserva da Biosfera Serra do Espinhaço, instituída pela Unesco em 2005.
Múltiplos impactos – O projeto, com lavra a céu aberto de minério de ferro, prevê extrair e beneficiar, num prazo inicial de 13 anos, cerca de 31 milhões de toneladas de minério. Para isso, efetuará supressão vegetal de 101,24 hectares, que correspondem a mais de 1.012 m², o que equivale a 100 campos de futebol, aproximadamente.
De acordo com a ação, o projeto é classificado como de grande porte e grande potencial poluidor, resultando em empreendimento de Classe 06, a maior da matriz de classificação. O critério locacional do empreendimento também foi fixado como de grau máximo, considerando que “haverá supressão de vegetação em Área Prioritária para a Conservação da Biodiversidade Especial”.
Ou seja, “causará impactos ambientais múltiplos e expressivos em bioma especialmente protegido, afetando negativamente a fauna e a flora locais, com repercussão em corpos d’água, qualidade do ar, estabilidade geológica e composição da paisagem”, afirma o MPF, lembrando que o próprio Estudo de Impacto Ambiental da mineradora previu alterações na qualidade do ar; nos níveis de ruído e de vibração; na dinâmica erosiva; no relevo e nas propriedades físicas e químicas do solo; nas taxas de recarga dos aquíferos; na dinâmica hídrica subterrânea; na disponibilidade hídrica; na qualidade das águas e na morfologia fluvial.
Haverá, segundo a própria empresa, perda de solo, assoreamento de cursos d’água, em especial os córregos Cubango, Triângulo e Fazenda, e supressão de nascentes. Inclusive, a supressão de duas nascentes e a intervenção na área de proteção de uma terceira levou o empreendedor a classificar esse impacto como “negativo, permanente, irreversível, de importância e magnitude médias, resultando em alta significância”.
O projeto também prevê afetação a estruturas de captação de água atualmente existentes no local, entre as quais se destaca a adutora do sistema de abastecimento do Rio das Velhas, que abastece parte da população dos municípios de Belo Horizonte e Sabará.
Os impactos sobre a fauna e flora também são consideráveis: redução do número de indivíduos das populações vegetais nativas; fragmentação florestal e aumento do efeito de borda; perda de biomassa; alteração da conectividade da paisagem; redução do número de animais da fauna e alteração das comunidades de dípteros vetores de endemias e das comunidades aquáticas.
Danos irreversíveis – O bioma Mata Atlântica, que a Tamisa pretende desmatar para produzir minério, é constituída por três tipos vegetacionais nativos: Floresta Estacional Semidecidual, Savana e Campos Rupestres. Nesse último, especialmente, dotado de características ambientais únicas no planeta, foram encontradas espécies vegetais e animais endêmicas de Minas Gerais, ou seja, que não ocorrem em outros estados.
Estima-se que a Mata Atlântica abrigue cerca de 20 mil espécies vegetais (35% das espécies existentes no Brasil, aproximadamente), incluindo inúmeras espécies ameaçadas de extinção. Essa riqueza é maior que a de alguns continentes inteiros: a América do Norte conta com 17 mil espécies vegetais; a Europa, com 12,5 mil.
Acontece que o bioma já foi dizimado em quase 90% da sua área original. Em Minas Gerais, restam apenas 11,6% de Mata Atlântica e é sobre parte importante deste remanescente que se pretende instalar o complexo minerário da ré.
“É fundamental entender-se a complexidade desse bioma e de seus componentes, para se perceber porque a legislação conferiu aos órgãos ambientais federais a responsabilidade de analisar e se pronunciar sobre quaisquer atividades que impliquem em sua supressão”, reitera Carlos Bruno Ferreira.
De acordo com o procurador da República, “vários estudos apontam, por exemplo, que o desaparecimento de uma planta ou animal pode comprometer as condições de vida de outras classes de indivíduos. Além disso, a integridade da Mata Atlântica é fundamental para a manutenção do que se chama de regime hídrico permanente. Seus vários componentes (folhas, galhos, troncos, raízes e solo) agem como uma poderosa esponja, que retém a água da chuva e a libera aos poucos, alimentando o lençol freático. Com o desmatamento, surgem problemas como a escassez, já enfrentada em muitas das cidades situadas no domínio da Mata Atlântica. No caso desse empreendimento, lembremos que ele está localizado dentro da APA Sul da Região Metropolitana de Belo Horizonte, em espaço que integra o chamado Mosaico de Unidades de Conservação Federal da Serra do Espinhaço, numa rede de áreas protegidas, próximas umas às outras, com alto grau de associação entre os ecossistemas”.
Equívocos de interpretação – Para o MPF, quando a Lei 11.428/2006 e o Decreto 6.660/2008 estabeleceram a obrigatoriedade de anuência prévia do órgão ambiental federal, o objetivo era exatamente o de se realizar uma segunda avaliação e dimensionamento das propostas, contribuindo, se for o caso, com o estabelecimento de novas condicionantes em favor da preservação do bioma.
“Os órgãos estaduais que autorizaram a instalação do projeto dispensaram ilegalmente a anuência prévia do Ibama com fundamento numa interpretação administrativa obtusa, exarada em um parecer da Procuradoria Geral Federal que de forma alguma vincula os órgãos da Administração Pública competentes para atuar na matéria”, afirma o MPF na ação, ressaltando que “o entendimento equivocado foi aplicado, apesar de a própria direção regional do Ibama ter-se posicionado contrariamente ao projeto nos termos em que foi liberado pelo licenciador”.
A defesa da necessidade de anuência prévia foi, inclusive, uma das razões para o voto do Ibama, contrário à aprovação do empreendimento, na votação do Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam) ocorrida na madrugada do dia 29 de abril passado.
De acordo com o MPF, o órgão licenciador estadual (Secretaria Estadual de Meio Ambiente) chegou a requerer a anuência prévia ao Ibama, mas acabou dispensando-a ao tomar conhecimento de um parecer da Procuradoria Federal Especializada, que, com base em analogias impróprias e equivocadas da legislação, afirmou que tal procedimento seria dispensável.
“Com a devida vênia, entendemos ter havido aí vários problemas, que partem de uma interpretação equivocada da lei, feita pela Procuradoria Federal especializada, até a adoção de um mero parecer, que não vincula a Administração. Na verdade, a própria Superintendência do Ibama em Minas Gerais posicionou-se contrária à adoção irrefletida das razões do parecer, tendo se manifestado na defesa da exigência da anuência, de modo a possibilitar a proteção do bioma, em dupla checagem e eventual incremento das condicionantes impostas ao empreendedor”, afirma o procurador da República.
“O que o MPF defende é que a anuência prévia do órgão federal não é condição para o licenciamento ambiental, mas sim para os atos de supressão vegetal em si, nos termos dos artigos 14, §1º da Lei 11.428/06 e art. 19 do Decreto 6.660/08. Além disso, a exigência legal, em nenhum momento direciona-se ao órgão licenciador, mas sim ao empreendedor, que não pode suprimir vegetação da Mata Atlântica sem essa autorização”, completa.
Recomendação não atendida – Com base nesse entendimento, e diante da gravidade dos múltiplos impactos do empreendimento, no dia 9 deste mês de maio, o MPF emitiu recomendação à Tâmisa, para que ela realizasse os “atos necessários à obtenção de anuência prévia a ser expedida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama, anteriormente a qualquer ato de supressão de vegetação do bioma da Mata Atlântica na região do empreendimento do Complexo Minerário Serra do Taquaril – CMST, localizado na Serra do Curral, na divisa entre os municípios de Nova Lima, Belo Horizonte e Sabará.”
Em 16 de maio, a empresa informou a discordância com os termos da recomendação, dizendo entender cumpridas as obrigações ambientais ao ter atendido todas as medidas exigidas no licenciamento feito pelos órgãos estaduais.
Para o Ministério Público Federal, “Em se tratando de supressão vegetal do bioma Mata Atlântica, ao não dispor de anuência prévia para supressão, o empreendedor, mesmo que de posse da licença ambiental, está impedido de promover quaisquer atos de supressão, pela patente ausência de requisito legal. A imposição se dá por norma especial, constante do Decreto nº 6.660/08, e é cristalina ao dispor sobre a cumulatividade necessária do licenciamento com a anuência prévia”.
“Um procedimento não exclui o outro, até porque, como já se disse, o instituto da anuência prévia do órgão federal funciona como uma segunda camada de checagem, na medida que outorga ao Ibama ou ao ICMBio a possibilidade de analisar os documentos relativos ao empreendimento, para dimensionar seus impactos na vegetação, realizar diligências in loco e efetuar considerações técnicas sobre o bioma”, proibindo o desmatamento ou, se for o caso, apresentando novas condicionantes, para além daquelas impostas pelo órgão estadual licenciador, lembra a ação.
O procurador da República resume assim a questão: “Fato é que o Complexo Minerário da Tâmisa irá desmatar principalmente a formação de Mata Atlântica denominada campo rupestre, que, por suas características intrínsecas, é irreparável ou pelo menos de dificílima reparação. Por sinal, naquele local específico, algumas regiões de campos rupestres contam com vegetação primária, ou seja, sem indícios de ação antrópica, requisito posto pelo artigo 32 da Lei 11.428/06 como motivo proibitivo para atividade de mineração. E ainda que eventualmente se discuta a classificação sucessional da vegetação da Mata Atlântica na área do empreendimento, é essencial que o Ibama possa efetuar os devidos estudos, inclusive adotando a orientação atual, referendada pelo próprio órgão, de adoção do grau primário de sucessão para todas as ocorrências daquela ecorregião, em cumprimento aos princípio ambiental da precaução e prevenção”.
Por isso, outro pedido da ação é que seja determinado ao Ibama que, se for o caso, cumpra a lei da mata Atlântica para só autorizar retirada de vegetação secundária, única permissível em caso de atividade minerária, e, caso não seja possível identificar claramente o estágio sucessional da vegetação existente na área do projeto, os estudos do órgão ambiental adotem, com base nos princípios da precaução e in dubio pro natura, a classificação mais restritiva.
(ACP nº 1025469-43.2022.4.01.3800 – PJe)
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