Diante da sua magnitude, os índios Caetés o chamavam de ?Grande Opará?, rio que parece mar
“Meu Rio de São Francisco, diante da turvação, vim te dar um gole d'água e pedir tua benção“. Essa oração popular dos povos ribeirinhos mostra uma reverência mística a esse rio que, ao contrário de outros que nascem na região Sudeste e seguem para o Sul, esse peregrina para o Nordeste brasileiro. O rio que sobe.
Também denota a situação degradante em que se encontra, bem como a sua defesa, ao lhe oferecer água, em vez de lhe retirar. Mesmo diante da devastação em suas margens, da monocultura da cana, dos dejetos despejado em seu leito, o grande Opará (rio que parece mar), como o chamavam os índios Caetés, em função de sua magnitude, representa, muito mais que um meio de subsistência.
São inúmeras as composições inspiradas que revelam o carinho, o respeito e admiração pelo Velho Chico, que “vem de Minas“, banhado em seus 2.830 km de extensão, 102 municípios nos estados de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas, até desembocar na Boca da Barra, em uma luta de titãs, onde o Velho, briga com Atlântico, para tentar impedi-lo de avançar rio adentro. Infelizmente, essa contenda, vem sendo vencida pelo mais poderoso.
Rio de histórias
Descoberto pelo navegador Américo Vespúcio, no dia 04 de outubro de 1501, dia de São Francisco de Assis, esse rio é palco de histórias que fazem parte da memória nacional. Uma delas é a dos índios Caetés que, em inúmeras batalhas com os portugueses, lutaram até serem exterminados sob a acusação de terem devorado o Bispo Dom Pero Fernadez Sardinha e sua comitiva, após sofrerem um naufrágio no Litoral Sul de Alagoas.
Uma outra, que nós penedenses estamos inseridos, é a do conde holandês Maurício de Nassau, ambicionando riqueza, subiu o rio até desembarcar em Penedo. Onde construiu o “Forte Maurício”. Depois de uma longa série de batalhas, os penedenses, com o apoio da coroa portuguesa, no dia 18 de setembro de 1640, batizada de ‘Openeda’, o domínio holandês findou-se.
Em 1859, o então imperador D. Pedro II, também ficou maravilhado com o São Francisco ao desembocar na Boca da Barra, no dia 14 de outubro, para então subir o rio em direção à Cachoeira de Paulo Afonso, conhecendo as cidades ribeirinhas, dos estados de Alagoas e Sergipe. Ao beber água doce do Chico, o monarca afirmou em seu diário de viagem, por volta das 8h30 da noite, na cidade de Penedo, no dia 14 de outubro de 1859: “A água que se bebe aqui é boa de sabor e dizem que não faz mal de demora por algum tempo nos vasos onde a guardam”.
Rio que inspira e ainda fornece o sustento
Apesar dos avanços tecnológicos, mulheres ainda tiram o sustento do árduo oficio de lavadeira de roupas. Cultura comumente encontrada nas cidades ribeirinhas. Umas dessas guerreiras é de Piaçabuçu. D. Edna, 52 anos, rosto envelhecido, semblante cansado, resultante do trabalho ao sol, e o Rio, sua ferramenta de trabalho. Ela conta que só estudou até a 4ª série do ensino fundamental. Teve que deixar os estudos para cortar cana e ajudar no sustendo da casa. “Infelizmente, fui obrigada a largar os estudos, mas, agradeço a Deus todos os dias por ter forças para continuar trabalhando. Apesar do pouco que ganho, coloco comida dentro de casa”, explicou dona Edna, enquanto torce e enxágua as roupas.
Em Santana do São Francisco, o barro retirado do leito do Velho Chico e dos antigos arrozais de suas margens, se transforma nas mãos dos seus moradores, essa é a cidade ribeirinha da cerâmica. Os oleiros manejam a matéria prima, transformado o barro, em verdadeiras obras de arte. Cada casa de ‘Carrapicho’, ou funciona um olaria, ou um atelier de pintura, responsável por dar o acabamento as peças. Lá, o homem é responsável por moldar o barro e as mulheres o acabamento final, a pintura. O homem nordestino com a sua rigidez, quem transforma a matéria prima retirada do Rio, em jarros, filtros, bonecos, fruteiras, esculturas, o inimaginável com o que vem do Velho Chico.
Na cidade de ribeirinha de Porto Real do Colégio, o índio Ailton Kaiomã, 37, da tribo Cariri-xocó é mais um dos ribeirinhos que fazem da arte uma fonte de renda. Trabalha na confecção de peças indígenas, também para preservar suas raízes. São cocares, lanças, arcos e flechas, maracás, brincos, todos ornamentados com sementes de mero, mulungu, olho de boi e madeira da própria região. Também faz brincos com penas de arara, paturi, periquitos, etc. Sua matéria prima também vem do Rio São Francisco.
Rio de fábulas
A crendice alimenta o imaginário dos ribeirinhos. Muitas lendas surgiram de histórias contadas por eles, em suas pescarias que viravam a noite na busca do sustento. Quando não os conseguiam, voltavam para casa sem nada ou com poucos peixes, narravam aos amigos e a família, alguma história como desculpa.
Entre as várias lendas do Rio São Francisco, existe uma bem famosa: a Lenda do Nego d'água. Muitos afirmam que já o viram. Ele é uma espécie de duende traquino que gosta de espantar os peixes e virar os barcos dos pescadores. Os mais antigos afirmam que conseguiram fazer amizade com ele, lhe dando fumo para mascar e cachaça. O pescador lhe colocava oferendas no local em que ele mora. Se no outro dia a cachaça e o fumo não estiver, é por que o duende as pegou e passará a ser amigo do pescador.
Outra bastante difundida é do Minhocão, que recebe vários nomes, de acordo com a região. Também conhecida como Surubim-Rei e no Baixo São Francisco, como Serpente D'água. Conta os pescadores que já a viram, que se trata de um peixe capaz de engolir dois homens numa só abocanhada. Segundo os relatos, é um surubim que, de tão velho, perdeu as escamas e as barbatanas, por isso o confundem com um Minhocão.
Essas são algumas das histórias que fazem parte do folclore do povo do Velho Chico. Como traduz Antônio Gomes dos Santos, conhecido como Seu Toinho Pescador: Tem um tal de nego d'água/ Que também gosta de assombrar/ Quando os pescadores se aproximam para a tarrafa jogar/ Eles estão em cima das pedras/ E pula para assustar/ Fazendo tanta maruada/ Capaz do barco afundar/ Estas são as histórias que também ouço contar…….
Como foi dito no início, “vem de Minas“, e mais, “vai bater no meio do mar” já foi palco de batalhas e mortes. Notícias das mais variadas, documentários, longas e curtas foram produzidos em seus belos cenários. Despertou a cobiça dos holandeses, portugueses e franceses. Fizeram e ainda fazem parte de sua história, rei, rainha, conde, bispos, presidentes, a dona Edna, o índio Ailton Kaiomã, o Seu Toinho, o José, a Maria e tantos e tantos, que ainda irão compor este belo cenário.
* Essa é uma pequena homenagem de todos que fazem parte da Organização Hélio Lopes, ao grandioso Rio São Francisco, em mais um ano de histórias.
