Se a vida e a morte sucedem uma a outra como lei universal a tudo que existe, por que não aceitamos a morte com a espontânea naturalidade, em vez de senti-la e encara-la como um eterno fantasma a nos apavorar? Certamente por ser tratar de uma estratégia do Criador em prol da sobrevivência. Se assim não fosse, se não a temêssemos, se não a víssemos como uma visitante inesperada e traiçoeira a destruir as nossas melhores expectativas, o que seria da vida? Perderia, sem dúvida, todo o afã de ser vivida. Embora coexistam por determinação de uma lei natural, da mesma forma elas se atritam, se repelem e se atraem, assim como acontece na divisão do átomo entre os polos positivos e negativos, impendido que a vida, sem conflitos, tenha um curso linear e monótono, negando-a.
Eram algumas das considerações existenciais que costumava fazer Jota Farias sob o efeito de agradáveis aperitivos que se somavam á bela paisagem, inspiravam sua veia filosófica. Contava com um pouco mais de sessenta anos de idade. Sua saúde, aparentemente boa para todos, corria muito bem, assim como seus projetos de vida. Ocorre que ninguém está livre das desagradáveis surpresas do destino. Seu apego pela vida obrigava-o a fazer exames de rotina, ás vezes outros de maior abrangência. Foi exatamente em um deles que ficou constatado ser portador de um câncer, a mais insidiosa das doenças. Não é preciso dizer do indescritível pandemônio que ocorreu em seu interior, sentindo o mundo a desmoronar-se. Segundo a biopsia, era do tipo mais agressivo ao tratamento, fato que encenava com o sepultamento de suas esperanças.
Foi durante esse período que mantivemos os últimos contatos. Foi também quando tivemos a curiosidade de observá-lo no antes e depois da enfermidade. O antes era o Jota Farias risonho, otimista e fraternal amigo. Tinha um gosto especial por bailes, sendo capaz de dançar com um cabo de vassoura. Em resumo, encarnava a vida desassombrado e determinação em seus afazeres.
Nas primeiras visitas já notávamos uma certa mudança em seu comportamento. De conversador, semblante sempre alegre e risonho, deu lugar a uma sóbria loquacidade. Seu olhar dava-nos a nítida impressão de estar perdido na escuridão de suas divagações.
De vez em quando, parecendo querer ser fiel à sua personalidade, mostrava-se ou encenava um comportamento expansivo, afirmando sempre, nesses raros momentos, que iria vencer o malfado câncer.
Com o passar de um ano e meses, sem sinais de que estava cedendo ao tratamento, transparecia em seu rosto o alheamento e a apatia a tudo. O que conversavam os que o visitavam não lhe despertava o mínimo interesse. Sequer uma boa piada, exímio contador que era, conseguia espantar o frio indiferentismo. As visitas, face a sua iminente derrota, eram dispensáveis. Preferia sofrer a sós a tortura de seus últimos dias. Os gestos de comiseração eram-lhe insuportáveis. Era a única bravura que lhe restava. Suportava dores lancinantes.
Chegou um momento que não mais sentia os braços e pernas, sobrando-lhe apenas as faculdades mentais, que nesse momento crucial era preferível não tê-las. Diante desse quadro irreversível profetizou a sua mulher que iria partir naquele dia. Em menos de uma hora faleceu.
Agnóstico, sem convicções definitivos sobre assuntos transcendentais, especialmente sobre o outro lado da vida, Jota Farias, derrotado com bravura ante um inimigo invencível, partiu para o desconhecido.