É a mais autêntica e espontânea exibição de alegria e otimismo pela vida. É fácil imaginar, pelo que se depreende do semblante de cada um, a visão inquieta, otimista e apressada de um futuro que se faz presente para a realização de suas aspirações. Em sentido inverso, é a inevitável expectativa de que a ação do tempo, aliada à tirania da morte, o manchará com tintas sombrias que traduzirão a tristeza, a saudade e a dor causada pela gradual supressão dos que se vão.
Laercio, engenheiro civil, fez parte dos formandos do ano de 1945. Era uma turma de vinte e cinco alunos, homens na sua totalidade. Um dia antes da colação de grau, como é de praxe, tiraram em conjunto uma fotografia para que servisse de lembrança. Serviria também para demarcar, daí para frente, a história de cada um. Simbolizando um período vivido com intensidade seria depositário das mais alegres e divertidas reminiscências.
Não há dúvida que o período estudantil é o mais agitado na multiplicidade de aventuras, especialmente quando se estuda fora de casa. As repúblicas, indubitavelmente, são o palco onde se desenrolam as mais divertidas peripécias. Em razão disso, é o mais importante investimento de capital à vida, vez que se usufrui em dois tempos, na ação presente e nas lembranças do passado.
Uma das virtudes da juventude, a transbordar puro romantismo, é imaginar que as delícias e prazeres vividos permanecerão em todo o curso de suas vidas. Assim pensando, antes que se dispersassem, acertaram que periodicamente se reencontrariam. Uma bela iniciativa para conservar a amizade, uma das coisas mais importantes da vida. Aconteciam em determinada cidade, sempre no mês de dezembro, apropriado para as bebemorações. As primeiras foram uma réplica dos excessos do passado. Nessas ocasiões, a fotografia, ampliada em um quadro emoldurado, era exibida sobre uma mesa. Já nos primeiros anos algumas baixas, prematuramente, eram comentadas. O mesmo faziam a respeito do exercício de suas atividades. Sob o efeito da bravura do álcool, teoricamente confessavam encarar a morte com naturalidade.
Os encontros passaram a ser cada vez mais espaçados. As bebemorações, bem mais moderadas, a morte, na sua funesta e contínua ação, passava a ser objeto de discussão e reflexões sobre a vida do outro lado, se é que existe. Apesar de alguns afirmarem estar preparados para enfrentá-la, destemidos sob o efeito do álcool, essas declarações não impediam, no fundo, de pensar com seus botões que poderia ser o próximo. As perdas continuavam, reduzindo o número para menos da metade. Já eram setentões. Poucos anos depois cessaram os encontros. Estavam naquela fase em que a vida, perdida em parte a vitalidade, começa a desmoronar-se. Têm até condições de dar continuidade às suas realizações, como fazem alguns, enquanto outros, como se estivessem anestesiados pela carência de emoções, não viam mais justificativa para qualquer empreendimento.
Laercio passou a ver o quadro, segundo seu estado de espírito, numa duplicidade de sentimentos. Sentia a real alegria nele estampada ou a tristeza de um passado perdido e que não mais voltaria. Fora dessa normalidade, algumas vezes, como se estivesse acometido por um transtorno psicológico, acreditava vê-lo sob o efeito de uma metamorfose. A imagem dos sorrisos nele expressa, aos poucos ia se transformando em rostos que se contorciam de dor. Estava refletindo a inevitável mistura de sentimentos opostos em que um sucede ao outro como indispensável tempero da vida.
Num dado momento, deu-se conta que era o único remanescente. Achava-se além dos oitenta anos de idade. O quadro não mais fazia parte das suas contemplações. Há muito tinha deposto as armas para enfrentar a vida ou usufruí-la. Tudo era a mesma coisa. Chovesse ou fizesse sol, era-lhe indiferente. Há um bom tempo estava na sala de espera, aguardando tão somente o momento para ir ao além. Finalmente, chegou o dia. Com a sua partida, a morte, simultaneamente, estendeu seu mórbido trabalho sobre o quadro, tornando-o totalmente opaco, ceifando a mais bela imagem de uma juventude a transpirar vitalidade. Pregado que se encontrava em uma parede, no mesmo instante desprega-se, reduzido a pedaços. Assim, sob o efeito de inexplicável fenômeno, como se animado fosse, morreu em solidariedade aos que em vida davam-lhe a vida.