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Profissão: O Sinistro Papa-Defunto

Qual o objetivo de um empreendimento empresarial? O lucro, sem dúvida. Vamos ao mundo hipotético e imaginemos que o papa-defunto adquiriu o poder secreto de decidir sobre a morte das pessoas. O que você acha que aconteceria?

Eis uma categoria profissional que pela excentricidade e aparente morbidez da sua atividade sempre mexeu com a nossa curiosidade, vez que comporta algumas indagações em vista da complexidade psicológica do homem e da inacessível escuridão que existe no âmago do seu ser.

Os grandes hospitais estimulam o surgimento de uma vizinhança onde cada qual, na sua especialidade, nutre expectativas opostas entre a vida e a morte. Referimo-nos às casas funerárias, sempre diligentes em seus serviços, aberta dia e noite à espera da apavorante e despótica personagem que não se dá ao trabalho de marcar hora para sua chegada. O paciente, ao entrar num desses hospitais, tem a possibilidade de visualizar uma tétrica exposição de ataúdes, do simples ao requintado, e ter um súbito pavor ou, na melhor das hipóteses, sendo um frio realista, pensar na possibilidade de sair vivo ou envelopado num daqueles símbolos da morte.

O homem, sob o seu aspecto natural, é antes de tudo um resquício do seu passado remoto, um predador pela sobrevivência e escasso sentimento humanitário. O papa-defunto, intrinsecamente funesto pela sua condição profissional, indispensável gari da natureza que vive da morte, embora não seja uma replica do primitivo, faz-nos lembrar do desalmado predador.

Independentemente do nível econômico e do negocio que exercemos, todos fazemos cálculos e previsões para encontrar o equilíbrio entre receita e despesa para atingir à meta final que é o lucro. Todos os setores produtivos, indústria, comércio e agricultura, entre outros, para atingir essa finalidade dependem de uma serie de circunstancias, desnecessário aqui enumerá-las. Mas no que tange ao papa-defunto, quais são os fatores favoráveis e adversos? Naturalmente que não são os mesmos dos demais meios produtivos, vez que nada produz, apenas recebe indesejáveis benesses da divindade da morte. Não tem como utilizar a linguagem da economia como produção, safra, produtividade, preço dos produtos, mercado consumidor aquecido ou retraído, etc. Mas quais suas adversidades? A boa saúde da população, longevidade, ausência de tragédias e epidemias. E os pontos favoráveis? O contrario das condições acima. Como vive da morte, será natural presumirmos, quanto mais houver melhor.

Abordar o presente tema, antigo desejo tem como finalidade tentar compreender o lado obscuro do homem e sua incrível capacidade de adaptação ao extremo de um comportamento absurdo. Dentro dessa adaptação, realçamos sua aptidão de ser capaz de praticar o mal ao extremo, ignorando princípios socialmente aceitos e sentimentos humanitários. Sob esse prisma, o homem se equipara a um cão amestrado para executar o que for determinado. Por exemplo, o soldado que no inicio da guerra depara-se com a resistência de consciência para matar o inimigo, ao abater o primeiro e outros, passa a matar com naturalidade. Dos carrascos nazistas, que alegavam obediência a seus superiores, introduziram nas câmaras de gás letal milhares de homens, mulheres e crianças sem qualquer remorso. Dos médicos que atendem nos movimentados prontos-socorros todo tipo de acidentados, rindo e contando piadas enquanto operam indiferentes aos lamentos e gritos de dor! E qual a relação, guardadas as devidas proporções, entre nazistas e papa-defuntos? Aparentemente nenhuma, vez que não mata, vive tão-só da expectativa da morte e, como tal, pode muito bem, intimamente, desejá-la como um potencial exterminador de vidas. Nessa linha, costumamos assistir, nas grandes cidades, ao descaramento e a falta de sensibilidade humana dos corretores de funerárias que com seus respectivos cartões abordam nos corredores familiares dos enfermos, oferecendo-lhes seus serviços. Há registros policiais de briga entre os mesmos nas disputa pelos mortos nas quais, parodiando uma música de carnaval, berram desesperadamente de que “o defunto é meu, eu vi primeiro”.

A atividade do papa-defunto, natural e essencial como gari da natureza, nem por isso deixa de respirar o ar infecto da matéria prima da sua profissão, a morte que lhe garante vida. Como qualquer empresário, pode cair na tentação de ser dominado pela ganância que irá obscurecer-lhe a razão e o sentimento humanitário. Dentro dessa possibilidade, repetimos a indagação acima: se o papa-defunto adquirisse o poder secreto de decidir sobre a morte das pessoas, o que aconteceria? Se comportariam de um modo normal, esperando que tudo aconteça dentro do curso natural ou, com uma visão empresarial, estabeleceria uma cota de abate de vidas, para aumentar seus lucros? Certamente teríamos os dois tipos. Isso, no entanto, não impediria que a nossa vida se transformasse numa loteria, podendo ser sorteada para o sacrifício sem direito a apelação, vez que um homem obcecado pelo lucro torna-se um louco para consumar seu objetivo a qualquer custo. Dentro dessa visão, seria um exagero afirmar que dentro de quase todos nós dorme um monstro da maldade? O que nos revela diariamente o noticiário policial? Em inúmeros casos, a mais completa bestialidade do homem, totalmente despido do respeito pela vida do próximo. Nesse ponto, chegamos à conclusão, de que se o hábito não faz o monge, gera muitas vezes o monstro da insensabilidade.

Eis porque a presente digressão, como um instigante exercício mental, tendo como pano de fundo o superlativo da maldade do homem, convenceu-nos de que valia a pena fazê-la.