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“Penedo, cemitério dos vivos?”

 Remontado tradicionalmente ao século XVIII, o culto aos mortos é celebrado no dia 02 de novembro orientado pelo calendário católico, e o cerne dessa ação é fator preponderante e por vezes questionável às variadas crenças religiosas e suas manifestações.

Os antigos romanos cunharam uma frase que de tão eloqüente transcendeu os séculos a nos augurar “mortuis morituri” (Mortuis, vocativo- aos. Morituri, genitivo – dos) – aos mortos dos que vão morrer -, frase possivelmente imortalizada pelo imperador romano Julio Cesar ao inaugurar fora dos limites de Roma as necrópoles e /ou sepulcrários; é o que hoje chamamos de cemitério. Curioso saber que essa frase é vista na maioria em cemitérios cujos mortos ali sepultados foram orientados segundo a religião católica. No Penedo, há uma lacuna diante desta questão em que pese a cidade ter uma predominância de católicos, essa indicação por vezes paradoxal não se apresenta no nosso cemitério “cristão-católico” São Gonçalo de Amarante.

Informações das mais precisosas podem ser obtidas através do minucioso estudo do professor Francisco Alberto Sales por meio da Casa do Penedo. Citando um dos seus livros, “Arruando Para o Forte”, o professor Sales nos faz saber detalhes singulares da nossa história que contempla a diversidade, o questionamento e também a razão. Leia-se: “a população negra do Penedo contava com muitos escravos islamizados do Sudão, escravos que conservavam pelos tempos a fora, suas crenças, seus hábitos e costumes, até mesmo observando o ritual malê no enterramento dos seus mortos, e cujas tradições místico-religiosas chegaram à “Festa dos Mortos” que era celebrada duas vezes por ano pelos mulçumanos do Penedo. Mello Morais Filho nos descreve esses rituais que também chamou atenção de estudiosos alagoanos, Abelardo Duarte e Arthur Ramos de modo especial.

Ainda sobre o cemitério São Gonçalo de Amarante cuja fundação data da chegada do Cholera Morbus, epidemia que resultou na morte de centenas de penedenses pelos idos de 1855, época em que “forçosamente” se deixava a prática de sepultar nas igrejas católicas; interessante saber que os túmulos mais antigos não estejam nesse cemitério, mas possivelmente na Igreja da Corrente e no Convento Franciscano. No “Arruando” do professor Sales encontramos fatos insólitos ligados ao nosso cemitério, como o de uma judia que faleceu no Penedo aos vinte anos em primeiro de março de 1873. Antonia N. C. Brandor era governanta dos filhos de Luiz Campos, abastado comerciante local, naqueles tempos não havia (e até hoje não há) campo santo para os de sua fé religiosa, e o vigário local não permitiu que seu corpo fosse sepultado no cemitério “católico”, o cadáver da moça foi então sepultado fora dos muros do cemitério público, no terreno da frente onde hoje funciona o Serviço Especial de Saúde Pública – SESP, e por lá permaneceu durante anos, até que em 1929 por ordens do prefeito Julio da Silva Costa, os restos mortais da jovem judia foram transladados para dentro dos muros do cemitério, ao lado do portão principal, numa carneira, túmulo simples. Isso, a lembrar do período Brasil – Holandês no qual Penedo abrigou a 2ª Sinagoga da América Latina, fundada pouco depois da primeira na cidade do Recife, e aquele fato envolvendo uma judia, ainda que isolado, foi mais que insolente, foi intransigente.

Contudo, no nosso cemitério: “andar por suas estreitas alamedas, espremendo-se entre túmulos imemoriais pode parecer mórbido, mas é também um passeio pela história ou até pelo bucolismo, já que é possível ouvir o canto alegre de um pássaro mesmo que este tenha sido engaiolado pelo coveiro”; ou ainda ouvir o assobio das almas no caso das mentes mais sensíveis e crentes. “Este é um cemitério do tempo em que os rigores dos homens eram mais rígidos e sólidos”. “E também o humor que não perdoa sequer os mortos. Quem procurar pelos corredores de túmulos achará uma lápide onde se homenageia com uma quadra um músico ilustre. Pródigo em sociedades musicais, o Penedo teve uma com duração de apenas um dia, pois seu fundador morreu no dia seguinte à sua criação. O fato está lá registrado pelos amigos no mármore: “O CLUB QUE TU CRIASTE À LEI FATAL JÁ CEDEU; ENQUANTO TU VIVESTE VIVEU, COM TUA MORTE MORREU”.

Apresentando uma vasta combinação de arquitetura fúnebre, com túmulos gigantescos pertencentes aos mais abastados da cidade, uns inclusive com obeliscos, cristos crucificados e cruzes banhadas a ouro, o São Gonçalo de Amarante apresenta também uma prática comum de aproveitamento de espaço com a verticalização dos túmulos, onde uns são dispostos sobre os outros e em andares para inclusive facilitar as visitações. Artes tumulares compõem a cenografia e junto delas, os significados, os desejos e as virtudes do homem vivo em respeito aos seus mortos.

Parte dessa razão remonta também à literatura, essa muito mais válida e intimista da forma como nos presenteia a poesia do paraibano Augusto dos Anjos com seu “caixão fantástico” – ”pois era tarde e fazia muito frio e na rua apenas o caixão sombrio ia continuando o seu passeio”. Penedo, cemitério dos vivos? É um questionamento que cabe inclusive neste calendário. Ao observar talvez no cotidiano do Penedo os males que se alimentam das 18 badaladas dos sinos da Igreja Matriz; sabe-se que são ás 18 horas que se finda o comércio, que se findam as aulas, as artes e as ousadias, e por que não dizer também que se finda a memória e daí correm entusiasmadas todas as almas vivas para seus “caixões”. A cidade se entrega à triste e bucólica escuridão da noite, e novamente Augusto dos Anjos – “em tudo o mesmo abismo de beleza”. Á essas “boas e vivas” almas válido desejar também “que a terra lhes seja leve”.