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Os Olhos do Poeta

 Quem nasce e cresce a correr pelas tortas e enrugadas ruas desta cidade do Penedo, inexoravelmente cria, com este lugar, uma dependência afetiva extremamente salutar. Eu – que nasci em plena Av. Getúlio Vargas, em nossa histórica Maternidade da Santa Casa – tenho certeza que, no exato instante em que o cordão umbilical me foi ceifado da placenta, um outro cordão de matéria incognoscível surgiu no lugar, com o diferencial de não mais me jungir a uma placenta já descartável e perecível, mas, a uma outra: imortal forjada na rocha deste torrão e na prata líquida que insiste em viajar milhares de quilômetros, desde as Minas Gerais, tão somente para acariciar a fronte da Velha Penedo, antes do mergulho inevitável nas águas do Atlântico Sul.

João Cabral de Melo Neto disse que (…) “a cidade é passada pelo rio como uma rua”, mas, aqui, a cidade é passada pelo rio como uma avenida sem fim, e que, apesar da correnteza ser um vetor apontado para o oeste, o leito do rio é de mão dupla, acalentando o sonho tanto de quem acompanha o sentido de sua corrente, como de quem escala suas águas na procura diuturna do pescado.

Assim sendo, levando-se em conta que ultimamente ando ufanista demais, talvez pelo clima da V Bienal do Livro realizada em Maceió, onde a nossa Academia se fez presente não só com lançamentos de livros, mas com palestra ministrada pelo poeta Francisco Araújo (cadeira 12), resolvi publicar uma crônica diferente: uma crônica poética sobre nosso Penedo. Intitulei-a “Os Olhos do Poeta”, extraída do livro Capítulo do Tempo que, em breve, será publicado. Espero que gostem. Ei-la:

Penedo estava envolta por uma bruma densa. Não era noite e nem era dia, mas, um interlúdio entre a treva e o alvorecer. Os vestígios da noite já estavam de partida e uma mescla púrpura se apresentava no oriente. As luminárias, atalaias sonolentas das ruas, afônicas e nostálgicas eram os olhos de uma urbe que já não dormia e nem acordava. As ruas, tortas e entrecortadas por pedras rústicas, num ermo absoluto, pareciam fumegantes na garganta de um vulcão, sinuosas e enrugadas como um ofídio preguiçoso.

Aquela bruma, na verdade, era a fumaça que antecede o sortilégio da magia, pois, quando o sol, com seu condão resplandecente, mas ainda tênue, debruçou-se sobre a cidade, eis que surgiu uma anciã, com os olhos brilhantes e o espírito de criança, cuja estrutura robusta e imortal se espraiava no penedio, com sua gênese forjada na contundência das rochas e na fluídica prata da Canastra que pulsava ao sabor da correnteza. As águas roçavam carinhosamente o limo do cais num compasso harmonizado com o sino da Matriz.

Nessas águas, minha infância, feliz, vive imersa, e este sonho foi um mergulho a esta tenra idade, onde o rio ainda era um turbilhão de mistérios e de quimeras, de paisagens que surgem e se evanescem, de canoas que, através da ingenuidade dos olhos, transformam-se em borboletas, bailando sobre a lâmina líquida do rio, e embalando (com suas velas ou suas asas), a ânsia diuturna do pescador que acalenta.

Neste sonho pueril em que a realidade me foi arrefecida, as enchentes do São Francisco que tantas casas afogaram, nada mais eram do que o amor incontido do Velho Chico que, ao transbordar, enlaçava a Velha Cidade num abraço carinhoso de dois eternos namorados.
Talvez, os olhos do poeta, mesmo que envelhecidos e despidos das fantasias de outrora, sejam – quase – como os olhos duma criança, pois que lidam não com uma realidade mitigada, mas, criam um mundo por metáforas arrefecido.