De memória curta, absurdos, sem pé nem cabeça, assim são os sonhos na sua grande maioria. Catão, aparentemente, é aquele tipo de pessoa que habitualmente apelidamos de normal. Toca a vida sem qualquer originalidade que o distinga do comum dos mortais em suas aspirações, niveladas que são pelo imprescindível a garantir-lhe uma digna sobrevivência com um pouco de conforto. Sobressai-se pela qualidade de caráter que o coloca no rol especial das pessoas honestas.
Cultiva um hábito que o escraviza para se tornar o cidadão mais bem informado. Embora a leitura de revistas e jornais não ocorra com frequência, em compensação o noticiário televisivo, imperdível, está no topo de sua preferência.
Existiam coisas no cenário nacional que a sua ingênua honestidade não consegue fazê-lo entender. Porque, pergunta-se com frequência, os três poderes que regem o Brasil são uma fonte perene de escândalos de corrupção? Será que não se pode descobrir um meio para estancá-la a um nível aceitável? No que diz respeito à corrupção no meio político, fato banal, já não o impressiona tanto. Por outro lado, o poder judiciário, uma caixa de surpresa, deixa-o muitas vezes insone por não conseguir convencer-se com a interpretação de alguns ministros do Supremo Tribunal quando apreciam temas polêmicos de repercussão nacional.
Por que, por exemplo, o corrupto eleito não é impedido de ser empossado, independentemente do tempo do delito, exceção de prescrição? Ora, se o crime não está extinto, trata-se de um corrupto em potencial e, como tal, não está à altura de ser um representante do povo. O Congresso Nacional, já infestado de gatunos, fica obrigado, por uma míope decisão judicial, a receber mais emporcalhados que irão denegrir ainda mais a sua imagem. Como fica o interesse da sociedade?
Sendo um pragmatista, acha que toda lei e sua interpretação quando divergente quanto à sua aplicabilidade no tempo, deve ir ao encontro do anseio do povo, relevando-se proibitivas formalidades constitucionais. Afinal de contas, está convencido, as leis existem para servir a sociedade e não o contrário. Que não se fale, com reverência, em respeito a Carta Magna porque tudo que é grande leva intrinsecamente o seu oposto, isto é, magnos erros e magnos acertos.
Ainda na esfera do poder judiciário, na atualidade um acontecimento, chama-nos deveras a atenção. Trata-se da guerra, praticamente a sós, da Corregedora do Concelho Nacional de Justiça, Ministra Eliana Calmon, contra diversas associações de magistrados. A primeira frente de sua batalha diz respeito à competência do CNJ punir juízes, precedendo iniciativas dos tribunais de justiça, nem sempre eficientes na apuração de delitos, levados pelo espirito corporativista. Será que essa divergência justifica tamanha balburdia e inconformismo?
A segunda refere-se a uma provável investigação da vida dos membros do judiciário. Vamos admitir, diz Catão, que seja verdadeira essa insinuação. E pergunta, se o juiz, desembargador ou ministro têm uma conduta ilibada, por que o medo da investigação? Somente o feijão podre irá bolar. Não estarão alguns sansões do judiciário com a consciência pesada? Lembrou-se, a proposito da guerra da ministra Eliana, do dramaturgo Ibsen que dizia que o homem mais forte que há no mundo é o que está mais só. Temos uma mulher no páreo dessa grandeza de ser forte.
Catão encontrava-se sobrecarregado com notícias que eram apropriadas para o mundo da delinquência. Quase todos os dias pipocavam notícias sobre improbidade de autoridades públicas em algum lugar do país. O Congresso Nacional, chegou a conclusão, era um lugar inconveniente e perigoso para deputados e senadores xingaram-se mutuamente de ladrões, pedirem apuração de responsabilidades contra ministros, pois, autênticos rabos de palha, amanhã aparecerão no noticiário com os mesmos pecados.
Em nome da brevidade, vou narrar com exatidão a terrível metamorfose acontecida em seu sonho.
Aconteceu na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Era um mar de gente. No centro, não era bem um teatro de arena, parecia mais um curral, estava cheio de corruptos dos três poderes. Lembravam animais. Em suas fisionomias transpareciam o medo, o assombro e a inquietação, movendo-se de um lado para outro. Separava-os um estreito corredor formado por compridas mesas. Por trás da multidão havia um palco para apresentação das bandas de samba. O espetáculo tem início com o toque do hino nacional. Vibrantes aplausos. Em seguida, vêm os ritmos carnavalescos.
O que mais lhe causou curiosidade e muito riso, é que todos os corruptos, impecavelmente bem vestidos como homens respeitáveis, tinham um corpo de porco e um rosto, da mesma forma, parecido com um focinho de porco. Os que faziam parte do judiciário, além da toga que vestiam, distinguindo-se dos demais, carregavam na cabeça o símbolo da justiça. Não bastasse o mau gosto desse enfeite que os ridicularizava, a efígie, despudoradamente, a todo momento tirava a venda, piscava, abria e fechava os olhos. Era a imagem da vadia de programa que faz tudo por dinheiro.
De repente, a claridade da praça se reduz a uma penumbra. Do céu, envoltos num halo luminoso, descem dez julgadores, os anjos exterminadores. Segundo convencionaram, cada qual faria o julgamento de cinquenta corruptos, sorteados entre componentes dos três poderes. As sentenças, sem necessidade de enfadonhos relatórios, resumiam-se a fazer a leitura da vida pregressa de cada um, indicando dia, mês e ano de cada delito. Ao término de cada, os sentenciados iam ficando um ao lado do outro. Concluídos os trabalhos, os dez juízes, em uníssono, como nos filmes americanos, desejam solenemente: “que Deus tenha piedade de suas almas”. Imediatamente, como obedecendo a um controle remoto, os corpos entram num processo de autocombustão.
A multidão, até então silenciosa, aos berros bate palma. Após alguns minutos, o ar estava empesteado pela fumaça e o cheiro de gordura, lembrando-lhe os fornos crematórios nazistas. Quando o toucinho estava crocante, no ponto pururuca, o fogo automaticamente se apagava. Os corpos eram postos sobre as mesas para serem trinchados. Diversas mulheres vestidas à baiana apareceram com bandejas contendo acompanhamento para o churrasco. O samba está a todo vapor. Muita cachaça e cerveja. O povo, canibalizado, estalava os beiços de satisfação.
Convém lembrar que logo após a condenação dos corruptos, os juízes voltam para o céu e a uns cem metros de altura abrem uma faixa em letras garrafais com a seguinte mensagem: o bom Deus não quis que vocês, brasileiros, sofressem a ira da natureza, mas como nenhum país poderá ficar isento de algum castigo, deu-lhes generosas safras de ladrões. Arrependido da sua escolha, bem mais grave do que terremotos e furações, em seu nome breve voltaremos para completar a limpeza.
Os que não foram julgados ficaram entregues aos cuidados de uma figura apavorante. Era alto, ombros largos, barba espessa num rosto quadrado e olhos vermelhos que revelavam toda a ira e maldade. Tratava-se de Caronte, o barqueiro do inferno, que os conduziu em direção a um túnel escuro que descia para as profundezas da terra. Ele sabia onde colocá-los, o degrau do inferno compatível com seus crimes.
Nauseado, Catão acorda sobressaltado e aos engulhos pelo desagradável cheiro de gordura. Acalmou-se. No quarto, não havia cheiro de gordura. Então se deu conta do sonho que acabara de ter e pensou consigo mesmo: esse pesadelo até parece uma revelação do além. Enraizada e tão grave é a corrupção no Brasil que só o julgamento divino, da maneira que sonhara, será capaz de salvá-lo com o jeito pátrio de ser: samba, cachaça e churrasco de corruptos.
Bendita graça divina!
