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Notícia Ordinária: morre a justiça!

Há dias, após agonizar por dezenas de anos, morre a justiça acobertada pelo véu do desencanto. Relegada ao abandono e sofrimento moral, esse impiedoso e sacrílego comportamento levaram-na ao gradativo definhamento até a morte. Esse comunicado tardio faz jus e coincide com o andar trôpego e lento, muitas vezes parado, que a caracterizou como carrasco a impacientar, infernizar e exasperar advogados e jurisdicionados. Seu corpo encontra-se exposto no corredor do fórum, dentro de um caixão fúnebre de vil qualidade. Ninguém tem coragem de postar-se à sua frente para prestar-lhe reverência. No lugar das preces que seriam normais para recomendar-lhe o céu, são ouvidas imprecações que ajudem a encontrar o caminho do Hades. Já começa a exalar mau cheiro, próprio dos corpos em decomposição. Não há quem se habilite a pegar na alça do caixão para conduzí-la ao túmulo. Recomendam que seja incinerada para que de suas cinzas, quem sabe, como uma fênix, ressurja milagrosamente com a imponência de uma autêntica justiça. Ela, em si, jamais irá perder a sua majestade. Perdem, sim, aqueles que tendo a responsabilidade de zelar pela sua imagem, sobrevivência e eficiência, continuam irresponsavelmente a respirar o ar infecto da apatia e indiferentismo. O fantástico desse passamento da justiça, especialmente em terra penedense, acreditando-se na sua imortalidade, é vê-la reduzida à insignificância e partilhar da desprezível vala dos mortais.

No vácuo da sua ausência, após o sepultamento, o nobre causídico Petronius, observador nato, procurou imaginar formas que possam fazê-la renascer e torná-la plena para cumprir à altura as expectativas que dela se espera. O porquê da sua ineficiência e decadência é do conhecimento geral. O que sempre lhe chamou a atenção é que entre as causas do seu emperramento, como o excesso de recursos, número insuficiente de juízes e pessoal de apoio, nunca ouviu uma menção à preguiça crônica de muitos juízes, totalmente relapsos às suas responsabilidades. E o que é de causar incredulidade, concebível apenas num Brasil avesso à seriedade, é que quando se quis contornar esse vergonhoso deslize expondo ao conhecimento geral o bom e o mau desempenho dos mesmos, surge alguém, cúmplice dos maus, alegando dispositivo legal, certamente de natureza constitucional, estando mais, no caso em apreço, para o direito prostitucional, para expor a ilegalidade da medida, vez que expunha ao ridículo, a caricatura de um juiz. Ora, se não é um juiz sério e responsável, não existe mais brando castigo senão expô-lo ao ridículo. É uma estúpida opção, para dar ares de evoluído, dos nossos legisladores em priorizar a bonita teoria a favor de poucos ao resultado moralizador em benefício da sociedade. Não vejo, diz Petronius, nenhuma incoerência ou falta de respeito à condição humana quando na avaliação de um julgamento se faça uso do pragmatismo, perfeitamente coerente com as decisões democráticas, escolhendo como verdadeiro o resultado mais útil a favor da maioria. Não existe caminho mais prático e sensato para as decisões.

Petronius e demais colegas penedenses, sentindo-se os mais miseráveis dos advogados, continuam a frequentar o fórum, alguns acompanhados de clientes numa autêntica procissão de desesperados. A verdade é que toda miséria particular parece ser uma exceção quando, no caso da advocacia em geral, é uma regra. Continuam, mesmo com a ausência da justiça, a fazer a mesma coisa como escravos do hábito. Naturalmente que dentro das suas funções adentrem nos cartórios para pedir informações sobre providências solicitadas junto aos processos. Também têm interesse em saber o paradeiro do juiz. Onde está? Quando aparece? Respondendo por duas ou três varas, sem o dom da onipresença, o que acontece é um resultado pífio em todas elas. Vive a justiça um estado de inação que precede o caos e a inevitável morte.

O ilustre Petronius, encontrando-se recentemente em um dos cartórios para cumprir sua rotina de acompanhamento de suas demandas, não percebendo nenhuma novidade, semana após semana, sentiu o peito opresso prestes a explodir numa metralha de impropérios. Conteve-se. Inspirou profundamente e relaxou. Começou então a olhar as pilhas de processos e imaginou o número de frustrações neles contidas. Alguns, concorrendo ao título de mais antigos, encontram-se em estado de fossilização. Pensou também na possibilidade de terem adquirido vida, absorvendo os sentimentos dos respectivos autores, traduzidos nos piores adjetivos. Logo chegou à conclusão que não era uma possibilidade, mas de uma certeza. Eles têm vida, isto é, tinham vida. Então se deu conta, na sua condição de sensitivo, que se encontrava em um cemitério de processos. Começa a ouvir lamentos e gemidos, eram gemidos de dor de almas penadas que padeciam a injustiça de uma justiça relapsa e desumana.

O que podem esperar Petronius e seus colegas deveras desiludidos? Calar diante de uma calamidade que tem sua origem no descaso? Não. Lembrou-se de Dante que na Divina Comédia põe no último degrau do inferno os que ficaram neutros nos momentos de crise moral. Tem que espernear, sim. Depois, não há alternativa senão superar o pessimismo. Afinal de contas, faz parte da lei universal, depois da vida vem a morte e vice-versa. É o que os antigos gregos chamavam de Enantiodromia. Há no presente, grande empenho para torna-la mais ágil.

A futura justiça, sem dúvida, aparecerá com uma nova roupagem. Pereceu na lama do desprezo. Dessa mesma fonte de contraste entre os opostos, germinará do pântano como uma bela e perfumada flor. Sepultada sem manchetes em edição extraordinária, reaparecerá com o brilho de uma estrela candente, empunhando o cetro com os símbolos das virtudes que deverão caracterizá-la, na mais ampla acepção e dentro das limitações humanas, como a mais pura e autêntica justiça.