Ainda quando era secretário executivo, no início da gestão do Ministro Gilberto Gil, no Governo Lula, senti que, além de políticas culturais mais específicas, mais ligadas às artes e ao plano do simbólico, carecíamos de debates mais complexos, que não ficassem presos ao programático, que nos ajudassem a levar para esferas mais elevadas o debate em torno da cultura e das políticas culturais e nos atualizasse com o século XXI.
Assim nasceu o Programa Cultura e Pensamento, que agora tenho a honra e o prazer de estar abrindo em sua mais nova edição.
O Cultura e Pensamento também nos aproxima do conhecimento produzido por intelectuais, artistas, universidades e centros de pesquisa. Preocupa-nos que mesmo o trabalho pedagógico, de pesquisa e extensão feitos neste campo não se reflitam dentro da sociedade com a grandeza que lhe é própria. E que as políticas públicas não se movam a partir de referentes conceituais e da formulação mais complexa.
Mas, queremos mais. Queremos incentivar além de eventos acadêmicos, congressos, encontros, pesquisas, estudos, mapeamentos, também processos formativos, publicações, construção de metodologias, envolvendo diferentes saberes; contribuindo para o processo de formação e qualificação dos agentes culturais e para a democratização do conhecimento sobre o campo cultural, estimulando redes de saberes, reflexões, pensamentos, fomentando curiosidades, criatividades e formulações em todos os campos envolvidos.
Vivemos, no Brasil e no mundo, um momento de crise que nos exige muita inteligência, sabedoria e lucidez. Lamento dizer, mas a boçalidade está muito à vontade no Brasil. Parece que os boçais perderam qualquer tipo de constrangimento. O século XXI nos impõe desafios de lidar com mazelas e mentalidades que já fazem cem anos e até com aqueles que a todo instante nos chegam por meio das novas tecnologias e do mundo digital.
Este e um programa que não privilegia temas em detrimento de outros. Nele, queremos ser indutores do debate e da reflexão. Buscamos valorizar todos os temas culturais por igual, sem dar a qualquer uma delas qualquer proeminência de assunto neste campo. Nosso objetivo é criar um ambiente favorável à interlocução entre todos: os pensadores, os gestores, os fazedores: grupos culturais, movimentos, redes, ativistas, intelectuais, e o público em geral, aproximando campos sociais, territórios e correntes de pensamento. Debater, dialogar, conversar e promover a participação têm sido uma marca que perseguimos.
Com os debates promovidos por este programa queremos fortalecer a diversidade, combinar o saber acadêmico, promover a interação entre grupos e coletivos, com diferentes saberes e conhecimentos formais, queremos fortalecer a participação e a democracia, assim, dando musculatura à cidadania.
A cultura é um caldeirão em atividade permanente, produzindo milhões de ações coletivas, associações entre pessoas, empreendimentos de grupos e de indivíduos. A imensa maioria se dá por iniciativa própria e com meios próprios. São atividades espontâneas e com grande capacidade de mobilização dos públicos a que se destinam. Vistas isoladamente, cada uma delas pode ter um alcance limitado no espaço e uma curta permanência no tempo. Mas, tomadas em conjunto, formam o nosso tecido vivo da troca de valores, de experiências, de descobertas e invenções. Mostram modos de ver o mundo nos quais nós mesmos nos enxergamos, e como nos definimos.
É dever do MinC refletir sobre essa produção gigantesca que surge de cada recanto onde existem brasileiros. Temos sinais indiretos da maior parte dela: pesquisas, registros, tabulações, índices que nos orientam. Mas todo esse universo de culturas entrelaçadas precisa ser compreendido, questionado e, finalmente, energizado pela reflexão de todos.
Este Programa, “o Cultura e Pensamento”, enfim, pretende elevar o nível das nossas teorizações a respeito, e aprofundar o nosso conhecimento do que o Brasil pensa, e de como o Brasil vem recebendo e acompanhando as grandes mudanças da nossa época.
Temos confiança na criatividade de nossa população, bem como na sua índole aberta, solidária, pronta para a cooperação e a troca de experiências. E temos confiança na nossa capacidade de refletir, também criativamente e solidariamente, sobre um cenário cultural tão complexo.
É complexo – mas é nosso. Estamos todos em casa. Não estamos estudando alguma cultura exótica cujo aprendizado tivesse que partir do zero, e com a qual ainda não tivéssemos nenhuma empatia. Não: cada fio que puxarmos na cultura brasileira irá mexer, e nem sempre de forma cômoda, em algo na nossa vida pessoal. Discutindo o Brasil, discutimos também o modo como ele nos formou.
Temos fé é no espírito criador dos brasileiros. Na sua capacidade de rapidamente estabelecerem laços de cordialidade e de respeito com pessoas que acabaram de conhecer. A atividade cultural, por sua própria natureza, atrai indivíduos muito diversos. O espírito criador responsável pela cultura, pela reflexão humana, pela expressão humana. Pontes que podem nos aproximar. Valores profundos que podem ser compartilhados de lugares opostos.
Cabe a nós, ao Estado, às instituições oficiais, desfazer os “gargalos” que dificultam o diálogo, o enfrentamento civilizado de sistemas conceituais distintos, a troca de informações entre diferentes regiões do País, diferentes grupos sociais, diferentes atividades que bem poderiam se complementar e se enriquecer mutuamente.
A cultura se manifesta em tudo. Tem peso em tudo. Condiciona nossos imperativos morais e éticos. Define as nossas preferências estéticas. Fornece narrativas e imagens que inspiram a nossa ação política. Cria os nossos mártires, os nossos vilões, os nossos heróis. Mesmo a nossa economia, que segue leis científicas, varia seu comportamento de acordo com influências culturais externas. Influências que buscam excitar nossos medos, nossos sonhos, nossas ambições, rivalidades, expectativas. Produz-se no interior dela uma dramaturgia da vida real, que nos move através do sentimento, e faz subir ou descer a balança da Razão.
A cultura é o campo de batalha das ideias divergentes que temos sobre nosso País, e nesse campo podem travar disputas muito enriquecedoras, quando os interlocutores estão movidos por um desejo genuíno de Verdade, e uma esperança genuína de Brasil.
O Cultura e Pensamento está sendo instalado, hoje, num clima de vivo interesse pelos acontecimentos que se desenrolam no planeta, em nosso continente americano, e em nosso País. Enxergamos assim as grandes questões com que a Cultura se defronta, porque ela luta sempre para não se deixar setorizar em especialidades, mas abranger cada vez mais todo o mundo capaz de ser abarcado pelo conhecimento.
Vemos então a delicada situação em que se encontra o planeta, vítima tanto de erros quanto de entusiasmos sinceros, refém tanto da desinformação maciça quanto da indiferença programada. Os numerosos cataclismos ambientais e sociais com que já estamos convivendo talvez ainda não nos tenham ensinado a necessidade de mudanças drásticas em nosso estilo de vida. Há um futuro que já começou a acontecer, e nossa expectativa em muitos casos é apenas a de minimizar suas consequências.
Parece estranho falar do planeta depois de dizermos que a cultura se faz através de ações localizadas, espontâneas e efêmeras, que não deixam muitos traços atrás de si a não ser na memória dos participantes. A cultura sempre busca um sonho coletivo que explique não apenas nossa curta trajetória de vida sobre a Terra, mas explique a trajetória da Terra também.
Talvez por isto, quem é profissional da cultura geralmente se sinta responsável também pelo planeta, pelo País e por todo espaço humano, o que inclui o jardim de cada um. A cultura é feita de um tecido de histórias, explicações, perguntas, ritos, mitos, silêncio e paz, ou som e fúria. É a totalidade da nossa experiência como povo, é a nossa cara feita de muitas caras, a nossa fala de muitas falas, a nossa dança de todas as danças, e a história que estamos contando sobre nós mesmos.
São muitos os desafios que temos de enfrentar.
Vemos à nossa volta o recrudescimento de manifestações da violência e da intolerância entre grupos que disputam um mesmo espaço social.
Vemos o impulso arrebatador das novas tecnologias, mudando com rapidez as regras da convivência humana.
Vemos os sérios problemas econômicos, políticos e ambientais que pairam hoje sobre o mundo inteiro, exigindo, de quem está disposto a repensar o Brasil, que repense também nossa atitude para com o planeta.
Estes são apenas alguns dos desafios que se colocam, por exemplo, diante da nossa literatura, das nossas artes, das nossas ciências sociais e da nossa filosofia, a quem cabe a tarefa de produzir conceitos à altura dos nossos saberes, dos nossos fazeres e dos nossos quereres.
É um Brasil difícil, mas a boa notícia é que devia ser mais difícil ainda nos tempos em que não tínhamos sequer as instituições básicas da democracia republicana, ou quando ainda achávamos que ter escravos era não somente algo legítimo, mas algo que dava “um toque de distinção” a alguém. Temos que conhecer nossa História. Talvez nem sempre para sentir orgulho dela; mas para entender melhor a direção para onde ela está indo, não importa que ventos estejam soprando em cada década. Talvez venham a ser muitas as tribulações que temos pela frente. Mas nunca foram poucas. E nada nos impede de achar que estamos bem preparados para enfrentá-las.
