O Guedes fica localizado em cima de um pôlder, uma área de inundação natural
“Você acha que eu não tenho medo? Tenho. Eles sabem quem eu sou. Agora, não é só eu que tem medo”, diz a professora Marlucia Santos de Souza, curvando-se sobre a mesa para chegar mais perto do gravador, como se tivesse receio de ser ouvida. Não havia mais ninguém no local.
“Todo mundo sabe, já é público e notório que São Bento é controlado pelas milícias. Então nós, moradores, temos que lidar com essa ausência de alternativa. Mas também temos que defender direitos. Fazer denúncias é um caminho para criar uma possibilidade de abertura de solução”, completa.
Marlucia é uma mulher de estatura baixa e ar de destemida: os óculos azuis contrastam com os cabelos negros, lisos até o ombro e as roupas largas, neutras.
Em 7 de março deste ano, agentes da Polícia Federal (PF) pediram a essa mulher destemida que os acompanhasse em uma diligência policial.
Isso porque, além de ser professora de ensino médio em uma escola pública da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, Marlucia é coordenadora do Centro de Referência Patrimonial e Histórico de Duque de Caxias e atua também como secretária executiva do Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente (Comdema).
Os policiais queriam apurar um esquema de grilagem de terras denunciado pelos moradores do Guedes, comunidade também conhecida como Novo São Bento, no município de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Cercada pelo rio Iguaçu e pelo rio Sarapuí, o Guedes parece estar brotando de um oásis verde, já que a área é cercada de manguezais e taboal, uma planta que cresce em regiões pantanosas.
A comunidade é rodeada por dois grandes rios, o Rio Sarapuí, que tem 36 km e corta quatro municípios da Baixada Fluminense, e o Rio Iguaçu que tem 43 km de extensão e deságua na Baía de Guanabara.
Desde agosto de 2015 os moradores reclamam aos órgãos públicos que as milícias avançam na comunidade onde moram mais de cem famílias, segundo lideranças locais. O objetivo: lucrar com a venda ilegal de terrenos.
Em quatro meses de apuração, a Pública reuniu documentos, ouviu testemunhas e conversou com os órgãos públicos à frente de investigações. A reportagem descobriu que os moradores convivem com o medo e o vaivém constante de caminhões de entulho que são usados pela milícia para aterrar e lotear mais terrenos ilegais.
Para piorar, a prefeitura construiu uma ponte no local que facilita a entrada dos caminhões de entulhos. Um inquérito policial que investigava o avanço de grilagem de terras no Guedes foi arquivado pelo Ministério Público Federal (MPF), embora relatório da PF comprove as denúncias. Resultado? Os moradores agora estão cada vez mais à mercê das milícias.
Um despacho do MPF emitido em julho de 2012 deixou claro que novas construções não são permitidas no local porque “é proibida a venda de lotes em toda a área do São Bento, já que o terreno é público”.
O documento do MPF explica que desde 2004 a região do São Bento pertence ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), do governo federal. De acordo com o INCRA, o terreno onde fica o Guedes foi adquirido pela União, ou seja, é terra pública, desde 1931.
Além disso, o Guedes fica dentro da Área de Preservação Ambiental (APA) São Bento, com mais de mil hectares, que abriga um dos últimos remanescentes de Mata Atlântica próxima ao centro urbano de Duque de Caxias.
A APA foi estabelecida como espaço ecológico pelo Decreto Municipal 320 de 1997 – quando já havia a comunidade do Guedes por ali – e, segundo o decreto, “não são permitidas atividades que venham a degradar ou a causar impactos ambientais”.
Mas, mesmo que o loteamento e a venda de terrenos no local sejam ilegais, as práticas persistem há quase três décadas.
PF contradiz decisão do MPF
Durante a diligência policial, Marlucia e os policiais visitaram o local das construções e conversaram com moradores. Onze dias depois da vistoria, porém, o inquérito IPL nº433/2015, que tramitava desde 2015, foi arquivado.
Um despacho emitido pelo MPF afirmava que a PF não conseguira ao longo dos últimos quatro anos “localizar o local do loteamento irregular e as pessoas envolvidas com o ilícito”.
Porém, a Pública obteve um relatório da diligência da PF que contradiz esse despacho.
O documento só foi apresentado para o MPF depois do arquivamento do processo. E revela a gravidade das irregularidades em curso no Guedes.
“Trata-se de área em processo de aterramento, na qual já existem edificações de alvenaria e sinais de avanços de aterro em sentido às margens do rio, local e no sentido contrário também”, diz o relatório da PF.
O parecer da PF relata ainda que, em uma das entrevistas feitas na diligência, “foi possível obter informações de que a área é controlada por milicianos e que os mesmos possuem influência na Prefeitura e cartórios da região para legalizarem as áreas invadidas e que há outras áreas da reserva sendo aterradas”.
As constatações foram tão alarmantes que o procurador Julio José Araujo Junior, do MPF em São João de Meriti, pediu em abril a reabertura das investigações. “Essa prática [de grilagem de terras] se renovou, e agora a gente tem um outro inquérito a partir dos dados recentes da diligência que foi feita”, explica o procurador.
O novo inquérito policial tramita agora sob o número IPL 328/19. “Em relação à investigação, ela é incipiente, então a gente não sabe como é que vai caminhar. Agora o que eu acho importante é que os órgãos estejam atentos à realidade daquela população, porque viraram as costas pra ela”, alerta Julio Araujo.
Famílias que moram no local dizem ter sido enganadas por milicianos, quando adquiriram suas casas. Hoje, convivem com o medo em uma zona controlada – e com planos de expansão.
Enganados e em área de risco
A apropriação ilegal das terras da APA São Bento pelas milícias não é nenhuma novidade. Afinal, o próprio Guedes foi fundado por milicianos.
No final da década de 1990 e ao longo do início dos anos 2000, as milícias lotearam e venderam os terrenos para cerca de 80 famílias, que permanecem há quase três décadas no local. O próprio MPF pediu, em 2012, que os moradores encaminhassem os títulos de propriedade registrados em cartório no São Bento, “já que é possível que eles tenham sido falsificados pelos vendedores”.
“A gente acredita, né? A gente foi no cartório, primeiro ofício, reconheceu firma. Para gente era tudo legal”, diz um morador do Guedes que não quis revelar sua identidade.
Temendo correr risco de vida, três moradores conversaram com a Pública sob condição de anonimato. Eles pediram para se encontrar com a reportagem em um local fora da sua comunidade, por segurança. Segundo eles, só descobriram a natureza irregular do terreno quando o MPF esteve no local em 2011.
De acordo com eles, a propriedade foi adquirida por meio de uma antiga associação de moradores do bairro. No ato da compra, os vendedores não apresentaram o Registro Geral de Imóveis (RGI), documento que assegura a propriedade do terreno.
“Na verdade, naquela época a gente não sabia que não podia comprar um pedaço de terra, um imóvel, sem RGI. Todo mundo comprava”, disse um dos moradores.
“Eu paguei o cara lá. Ele foi lá no cartório, registrou e pronto. Dizem que é documento, mas não é documento. O documento da minha casa sou eu mesmo, que estou morando lá. É o que eu tenho pra provar que a casa é minha”, conclui.
Muitas dessas famílias vieram do Nordeste à procura de trabalho no Rio de Janeiro e chegaram com o sonho de construir uma casa própria.
“No início, você está construindo um sonho. Para gente era uma área rural, era uma fazenda que foi loteada. Então você pensa: ‘Poxa, eu vou com a minha família para um lugar tranquilo, com verde. Vai ser um lugar sossegado, o nosso recanto’. Só que não foi bem assim. A realidade desconstruiu tudo”, relata mais um morador.
Os cartórios, que expediram os títulos para os moradores, também são foco de uma investigação que tramita no MPF pelo Inquérito nº70/2015-89.
Uma recomendação expedida pelo MPF em 2016 pede que o Cartório de Registro de Imóveis do 1º Oficio de Duque de Caxias “se abstenha de realizar registro de desmembramentos e de alienações referentes a imóveis de propriedade do Incra na região do Núcleo Colonial São Bento”.
A recomendação demanda ainda que o cartório “adote as providências cabíveis para a retificação dos registros públicos de imóveis de propriedade do INCRA em nome de terceiros.”
O Incra, por sua vez, também foi acionado na mesma recomendação do MPF para realizar um levantamento cartorário dos seus imóveis no São Bento, com o objetivo de identificar e anular todos os registros ilegais encontrados.
Em nota enviada para a Agência Pública, o INCRA informou que foi criado um grupo de trabalho para tratar do tema, o que “resultou na elaboração do Relatório sobre a situação ocupacional de áreas remanescentes do Núcleo Colonial São Bento, bem como no encaminhamento de ofícios aos cartórios e na expedição de uma série de notificações a ocupantes irregulares (pessoas físicas e jurídicas) visando a reintegração da posse de áreas do Incra.”
