Mais que um amante das letras e da Língua, um amante da vida. Assim era Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, o Mestre — como era e ainda é chamado por todos. Nesta segunda-feira, quando se comemoram 100 anos de nascimento do lexicólogo, filólogo, escritor, professor, ensaísta, crítico literário, cronista, poeta e, antes de tudo isso, alagoano, pessoas que conviveram e que estudaram sua trajetória de vida contam quem era a pessoa por trás do intelectual. Um homem de hábitos simples, distraído, que gostava de sorvetes e de crianças.
“Ele vivia concentrado no mundo das letras, andava pelos lugares sempre distraído. Certa vez, pediu uma lixa para serrar as unhas ao garçom de um restaurante”, lembra Solange Chalita, amiga de Mestre Aurélio, com quem conviveu e de quem guarda boas lembranças.
Aurélio nasceu no município de Passo do Camaragibe, de onde se mudou com poucos meses de vida. Foi morar em Porto de Pedras, depois em Porto Calvo, até vir para Maceió, onde conseguiu o primeiro emprego em um estabelecimento comercial localizado no bairro de Jaraguá. Com o primeiro salário, Aurélio comprou uma roupa de casimira. Com o segundo, uma gramática e um exemplar do livro Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.
Era um intelectual admirado pela generosidade e simplicidade. E foi dessa simplicidade que surgiu o dicionário mais usado na atualidade, que leva o nome do seu criador, Aurélio. Basta abrir uma de suas edições para entender porque ele se tornou o mais popular dos dicionários. Nele, estão as palavras usadas pelo povo, com quem Mestre Aurélio adorava estar.
Para onde ia, ele carregava dentro dos bolsos pedaços de papel, onde fazia questão de anotar as palavras que ouvia das pessoas na rua. Além de usar a “linguagem do povo”, o Mestre também fez questão de exemplificar o uso das palavras em frases retiradas de obras literárias, um diferencial que tornou o Aurélio (dicionário) o que vemos hoje.
“Ele era um colecionador de palavras e por isso o Aurélio é um dicionário vivo, o único que entrou em todas as casas”, conta o sociólogo e escritor Marcos Vasconcelos Filho, que não chegou a conhecer o lexicólogo pessoalmente, mas escreveu um livro sobre sua história após meses de pesquisas.
E ele está certo. O legado deixado pelo Mestre está em todos os lugares, nas estantes das casas, nas mochilas e carteiras escolares, nas bibliotecas, ao lado do computador. “Aurélio cresceu comigo e com todos nós. Mesmo que você não tenha aberto um dicionário, do Aurélio você já ouviu falar”, completa o sociólogo.
“Ele registrou a língua culta e a popular. Fez a correlação entre a língua falada e a escrita. A linguagem do século XVI e a contemporânea. O Mestre Aurélio deve ser medido pela sua obra em favor da Língua Portuguesa”, contou Solange Chalita.
Uma característica marcante do Mestre Aurélio era o seu amor por Alagoas, sua terra natal. Sempre que podia, ele saía do Rio de Janeiro — onde foi morar no final da década de 30 — e vinha ao Estado onde nasceu e viveu grande parte da sua vida. Ele fazia questão de passar pelas ruas onde morou e pelos locais onde trabalhou e viveu momentos importantes ao lado de amigos, dos quais nunca esqueceu.
“Ele sempre estava por aqui e não recusava nenhum convite. Gostava de festas, de sorvete misturado com doce e salgado. Era um gosto estranho. Ele vivia com a cabeça nas nuvens, nas letras. O que me chamava a atenção era justamente essa distração. Ele chegava nas festas, encontrava as moças, falava, beijava e depois vinha falar novamente como se não as tivesse visto antes. Tenho muitas lembranças boas da convivência agradável de um homem culto e extremamente simples e generoso que foi Aurélio”, ressalta Solange Chalita, cujo pai, o médico José Lages Filho, foi amigo e contemporâneo do dicionarista.
Ela conta que a esposa do Mestre Aurélio, Marina Baird, era extremamente metódica, sendo ela a pessoa que se encarregava de “organizar” a vida do marido. Hoje, Marina continua morando no Rio de Janeiro, mas, assim como Aurélio, sempre que pode vem a Alagoas, onde reencontra pessoas que fizeram parte da vida do casal.
Quando vinha a Alagoas, Aurélio também gostava de acordar cedo e ir ao Mercado de Jaraguá comer pão doce com carne, juntamente com amigos, entre os quais estava o Menestrel das Alagoas, Teotônio Vilela.
“Ele era muito extrovertido. Gostava de contar piadas em meio aos intelectuais da Academia Brasileira de Letras. Quando ele saía para comer com um amigo, gostava de parar de comer no prato dele para comer no mesmo prato da pessoa com quem estava. Ele era diferente dos demais intelectuais”, diz Marcos Vasconcelos Filho.
Em suas pesquisas, ele descobriu que, certa vez, o escritor Mendonça Júnior, que estava ajudando Aurélio a escrever o dicionário, passou alguns meses sem receber pelo serviço e foi falar com o Mestre, que disse entender a necessidade do pagamento, pegou uma pilha de livros, entregou ao amigo e afirmou que não havia nada melhor que ganhar livros. “É o melhor pagamento que um homem pode receber”, disse, na ocasião.
Aurélio também gostava da convivência com jovens e crianças e tinha uma grande admiração pela cultura popular de Alagoas. “O Mestre Aurélio gostava muito do folclore e isso está presente na obra ficcional dele. Todo jovem ficava impressionado quando via um homem de tanta sabedoria conversar e era assim que acontecia. Ele adorava recitar e era sempre a estrela em meio aos jovens”, contou Solange.