É natural, especialmente entre os que exercem a mesma atividade, a reciprocidade em querer saber sobre o resultado dos negócios. Sendo um pequeno fornecedor, o meu encontro com o Jeremias, que há muito não o via, não podia ser outro o assunto senão sobre a cana.
Embora comungássemos a mesma desgraça financeira referente a essa atividade, achei por bem que ele desabafasse suas mágoas e tecesse suas considerações paralelas entre o fornecedor e a usina acima.
Esperando que ele começasse o seu improviso, surpreendi-me quando ele sacou do bolso duas folhas de papel e, puxando-me para um canto, pediu-me que as lesse.
Deixando de lado o preâmbulo, eis o que disse:
“Admitimos, como tantos outros, ter sido vítimas do canto da sereia. Bem sucedidos na primeira e única safra, imaginávamos ter pisado em terreno fértil e firme a nos garantir, sem dúvida, auspiciosa e estável fonte de renda.
Casados às pressas, iludidos pela romântica fantasia do amor à primeira vista, a parceria logo mostrou uma faceta inamistosa e cruel, atuando, dentro de uma visão estreita, contra o interesse mútuo. Nunca vimos lua-de-mel tão curta. Colhida a primeira safra com as comemorações festivas do bom resultado, nuvens agourentas e sombrias começaram a pairar sobre o nosso alegre otimismo, empanando o brilho do sol a revigorar as nossas esperanças.
Onde está a culpa desse casamento mal sucedido entre Paisa e fornecedores? Reconhecemos que o intervalo entre a primeira safra e o presente, fatores adversos da natureza, chuva e sol na medida errada, contribuíram para a frustração de algumas expectativas. A esses caprichos, soma-se o fator preço, volúvel e sensível ao mercado externo, em parte decorrente da flutuação da cotação do dólar. A primeira causa é de entendimento geral, enquanto a segunda, compreensível a poucos, é a menos convincente das justificações.
Mas nem o bom preço, como ora ocorre, pode ser objeto de alegria de que iremos tirar o pé da lama. Se o fornecedor tiver dívida, ela cresce na mesma proporção do preço da cana, fato que anula, numa lógica satânica, toda a euforia. O mesmo se diga do dólar, que não sofreu grande desvalorização. Será que existe alguma via salvadora para o fornecedor?
É evidente que aquele que vive na iniciativa privada deve estar preparado para os reveses a ela inerentes. O que nos chama a atenção é parecer que o itinerário percorrido pelas duas partes, não converge para a mesma direção. Enquanto o fornecedor tenta transitar pela estrada da sobrevivência, esburacada e cheia de solavancos, a Paisa trafega em trechos pavimentados, a propiciar-lhe o conforto de uma viagem ruma à expansão de seus negócios.
Os bons resultados se foram e o fornecedor, alimentado pela esperança, fica a esperar pelo seu retorno. Essa espera, que se torna sem fim, vem originando o desgaste e o conseqüente pessimismo que cresce a cada dia. E quem é o culpado dessa falta de sintonia entre os dois parceiros? Estamos certos que a Paisa, num descrédito quase total, aparentando ter abraçado o sentimento da ganância insaciável, nunca oferece a mínima vantagem capaz de minimizar o drama do fornecedor.
Não imaginamos que a Paisa deva transformar-se numa casa de caridade, mas é inadmissível que permaneçam indiferente e insensível aos extremo no que toca ao drama do fornecedor. É o absurdo de uma visão empresarial! Não bastasse esse aleijão, tem carregado em todo o curso de sua história o estigma da crônica descapitalização, fruto da má gestão com as cores da aventura e da temeridade, transformando o fornecedor em argila na construção de prédio sem estrutura. E o que tem a ver o fornecedor com seus erros? Já houve, ao menos, um gesto de desculpa e satisfação do porquê dos seus vergonhosos e humilhantes métodos de pagamento? O bom relacionamento, ao que nos parece, está fora de cogitação
Que não culpe a crise mundial que abalou a economia dos países como um todo. Isso é passado e não permite desculpa para um comportamento corriqueiro de desrespeito e indiferentismo. É uma atitude que nos faz acreditar que não estamos em parceria com uma Usina e sua modernidade administrativa, mas com um engenho e sua filosofia escravagista e autoritária. Em outras palavras, a impressão que nos dá é que entre Paisa e seus fornecedores existe um acordo tácito. Ela planta e colhe e, no faz de conta que paga, distribui em parcelas as migalhas que julga de direito do fornecedor. É uma nova modalidade de grilagem. O fornecedor tem a posse de direito e a Paisa, de fato. Quem lucra mais? É inacreditável!
Nenhum negócio é bom e duradouro se apenas uma das partes leva vantagem. Os que administram a Paisa sabem muito bem dessa filosofia de trabalho e certamente a repete a todo momento. Acontece que fica apenas na teoria. Urge que façam uma autocrítica, recicle seus métodos de relacionamento, tocado pelo espírito humanitário, sob pena de vererm desmoronar a parceria dos fornecedores, que comem de cabresto e vivem subjugados à força cega do irracional egoísmo que carrega o emblema do lucro a qualquer custo como única finalidade.”
? Gostei. Esteja certo que a sua observação crítica, sem revelar em excesso já que traduz uma triste realidade, está em prefeita sintonia com a esmagadora maioria dos fornecedores. Não ouvimos elogios ou cânticos de aleluia ao comportamento da Paisa, mas apenas o lamento, o desencanto e a completa frustração. Quem já teve a oportunidade, no decorrer da colheita, de se encontrar em seu escritório, provavelmente tenha assistido cenas de dilacerar coração, protagonizadas por humildes fornecedores quando tomam conhecimento de seus saldos. O otimismo dá lugar ao desespero quando são informados, senão de um débito, de um aviltante e irrisório saldo de alguns centavos. E agora, deve continuar na desgastada esperança de que as coisas irão melhorar? Como irá sobreviver até a incerteza? Que atividade é essa que em toda sua fase produtiva só é capaz, semelhante a bananeira, de dar apenas um filho? Afinal de contas, qual a finalidade do trabalho, um exercício de servilismo e mortificação ou garantia de uma digna e honrada subsistência?
Os que fazem a Paisa, dão-nos a impressão que são reencarnações de um passado distante. Como se estivessem no início do capitalismo, dele têm uma visão selvagem, vampiresca e puramente leonina. Para nós, tudo; para os outros, nada. Vivendo no presente o passado, sem uma visão humanista, essa incompatibilidade a levará, inexoravelmente, à decadência e ao completo desmoronamento.
Não pretendo mais ser vítima e espectador de cenas dignas do inferno dantesco, de ver almas penadas condenadas pela teimosia e credulidade num cenário estéril a toda esperança. Sim, meu caro Jeremias, o destino torna passível de sofrer as penas do inferno a todos que se comportam em obediência à estúpida ingenuidade. Não desejo mais ouvir dos colegas fornecedores imolados, como válvula de escape, a cantarem, com toda ênfase do amargo fel, o hino de louvor à Paisa, bela página de pura poesia e encantamento de harmonia, no compasso de um caudaloso rio de impropérios e macabras recomendações. Estou a retirar-me e a livrar-me do látego dos escravocratas de engenho que parecem sentir um oculto prazer pelo sadismo