Saio a caminhar e logo que lanço o olhar para rua sinto a atmosfera de uma cidade judiada, ressacada, enferma e financeiramente falida. A passos lentos, matutei como alguém, sem o instinto de abutre carniceiro, pode se interessar por um corpo reduzido a carcaça. Comecei a imaginar razões e encontrei duas alternativas: ter o sentimento com a força do milagre para revitalizá-lo ou ter a esperteza de quem acha que mesmo restando ossos e pelancas, ainda se pode retirar algum naco de carne do reabastecimento mensal a que tem direito. Não deixa de ser uma tentação de carcaça.
Coincidentemente, indo na minha direção, a uns vinte metros, percebo uma figura feminina um tanto encurvada, bastão em punho pra ajudá-la no seu lento caminhar que se dirigia a um banco para sentar-se. Surpreso, vejo que se tratava da velha amiga Penedo. Como há muito tempo não a via, resolvi interromper minha caminhada para conversarmos um pouco para atualizar-me sobre as novidades políticas. O talhe elegante do seu vestido de tecido fino, contrastava com a sujeira e a triste fisionomia. Não era uma simples tristeza, mas a imagem da mais completa desolação. Logo cheguei à conclusão que não iria ouvir, para minha decepção, agradáveis fofocas. Sufocada e impelida pelo sofrimento, seu ímpeto era abrir as comportas para dar vazão e aliviar suas contrariedades. Apesar de ter captado seu sombrio estado de espírito, não podia, para dar início à nossa conversa, deixar de fazer-lhe a convencional pergunta de como estava passando.
Apunhalada por todos os lados. Como é bom vê-lo, meu amigo, só assim poderei desafogar o meu peito cheio de aflições. São grandes e há tanto tempo fazem de mim sua morada que temo ficar curtida e insensível o meu espírito para suportá-la com naturalidade, sem a preocupação de mudar para melhor. Todo o último quadriênio fui transformada em depositária de frustrações e decepções. Encontro-me de tal forma tão confusa e transtornada que tenho sido levada à fuga da realidade, buscando no inexplicável as causas do meu triste fado. Será que existem o destino, a sorte e o azar? Como entender a minha desgraça que só tem gerado o desânimo, impedindo-me de ter uma visão otimista do futuro? Tenho sido, nos últimos quarenta anos, com raríssima exceções, uma cobaia nas mãos da imperícia. Nunca imaginei fosse capaz de assistir as mais desbaratadas experiências que primaram pela incompetência e a improbidade. Como quem vive no inferno não pode ter outro desejo se- não dele safar-se, quero acreditar que o atual gestor dos meus negócios encontre a carta de alforria para a redenção dos meus desenganos e sofrimentos.
Na verdade, não lhe resta outra alternativa senão esperar. Mas no que se refere ao quadriênio passado, timbrado pela urucubaca, não existe outra explicação se não o engano do eleitor que escolheu o seu prefeito que tem a paternidade do chamado quadriênio alexandrino, sinônimo de catástrofe e administrativa.
Você está certo. Essa catástrofe, não bastasse a sua condição de emperrada e que não foi a lugar nenhum, atingiu seu ponto culminante com o meu caos financeiro, aparentemente incontornável. Como irei sobreviver diante desse abismo fatal? Como cheguei a tal ponto?
Sinto-me impotente para confortá-la. Para quem sofre, as palavras são inúteis. De qualquer maneira, mesmo que não sirva de alento, devo dizer-lhe que todos nós temos uma tendência em pensar que a nossa desgraça é maior que a dos outros. Como nos informou o noticiário, existem muitas Penedo no estaleiro á espera de reparos, especialmente no setor financeiro. Acontece que nessa área, curiosamente, as dívidas são resultantes de um somatório de diversas administrações, abrangendo a passada do atual prefeito. Face a essa realidade, não deveríamos estar ouvindo lamentos, mas atos de penitência pelos erros cometidos. Não continue desesperada. Tudo se resolverá, basta que se amacie no tempo a paciência.
Acontece que tão pesado é o meu fado que me sinto incapaz de afugentar todo o pessimismo e acreditar que um dia terei a graça de ver sobre a minha cabeça um céu de estrelas cintilantes e os meus ouvidos o prazer de ouvirem o repicar de sinos em sinal de louvor pela minha salvação.
Espero que supere seu pessimismo, e as noites de pesadelo em um sono de criança. Como católica fervorosa que é reze para quer seus eleitores não se enganem na escolha dos seus prefeitos. Otimismo é força positiva. Afinal de contas amiga, tudo é transitório e a essência da vida se explica pela transação entre os opostos. A tempestade das suas aflições, esteja certa, logo se abrandará numa suave brisa.
Levantamo-nos para as despedidas. Guardei uma certa distância, o suficiente para esperar-lhe a mão. Penedo fedia um pouco. O descuido da sua aparência passava a revelar uma pessoa arredia ao banho e um rosto macilento inspirou-me náusea, recusando-me a beijar-lhe o rosto como de costume. Fiquei tocado pela comiseração. Recordo-me do seu invejável passado e num átimo passa pela minha mente a imagem da estátua da liberdade em Nova York e desejei, do fundo do coração, que se livrasse das suas agruras e surgisse de uma fonte luminosa, como num passe de mágica, com todo esplendor e imponência erguendo a tocha da sua libertação.