Nem mesmo a mais generosa dádiva divina está isenta de um preço. Ifigênia nasceu e cresceu bela para reinar, não necessariamente como uma natural consequência para ser feliz. Era a mais nova entre os três irmãos. Sua mãe, professora, aos quarenta anos era relativamente atraente. Tinha um gosto acentuado pela boa aparência, tratando-se com todo esmero dentro de suas possibilidades. Essa inclinação pela garridice seria uma preocupação em dobro com a sua Ifigênia que, com seus atraentes atributos, já vislumbrava a certeza de um excelente candidato para futuramente desposa-la. Era mais que um direito natural.
Aos quinze anos Ifigênia atingiu o ápice de sua formosura. Clara, cabelos pretos bem lisos, nariz afilado, estatura acima da média, corpo esguio e curvilíneo, pele sedosa e macia, olhos castanhos e caminhar levemente saltitante, transparecia pura sedução. Tendo consciência dessa graça divina sua vaidade inflou-se a tal ponto que passou a julga-se uma diva emblemática da beleza e que tinha todo o direito de fazer jus ao requinte e capricho de suas fantasias. Tornou-se presa desse convencimento e acreditava que o tempo faria sua parte no momento certo. Seria uma concessão natural do destino que se dobraria em reverência a uma deusa.
Suas colegas, enciumadas, conseguiam mesmo assim suportar seu exagerado esnobismo. As primeiras chamas do amor que marcam de forma indelével na memória a ternura e o fogo da paixão passaram-lhe incólumes e indiferentes. Essa frigidez feria de morte sua divina beleza ao fazer contraponto com Eros, a divindade do amor. Entre as amigas, as que não tinham já tiveram namorados. Ifigênia não fazia parte desse ingênuo romantismo proletário ao gosto das pessoas comuns. Sempre rejeitou os muitos que queriam render-se aos seus encantos de ninfa feiticeira. Não preenchiam suas exigências. Convivência a dois para gozar a vida e constituir família deve estar pautada, acima de tudo, numa visão calculada de negócio. Os devaneios oníricos do amor puro de entrega ao ser amado, dos suspiros, dos beijos, carícias e abraços não passam de uma breguice que resiste ao tempo.
Concluindo o segundo grau, várias colegas, imbuídas de uma visão prática e realista de terem uma profissão, foram em busca de um curso superior na capital. Ifigênia foi uma das exceções. Além de não ter gosto pelos estudos, não via porque se preocupar em ter uma profissão, gastando tempo e esforço inútil se iria ter tudo o que desejasse. Seu príncipe encantado, futuro provedor de suas fúteis fantasias, logo iria cair a seus pés.
Decorridos alguns anos, enquanto suas ex-colegas casadas já tinham uma profissão, Ifigênia, solteira, vivia a contentar-se com empregos comissionados na esfera municipal. Não exercia como um gesto de gratidão política ou por sua qualificação profissional, mas por uma remota expectativa de tê-la em seus braços e poder usufruir o embriagante e incomum prazer com uma ninfa.
O tempo é implacável na sua incessante marcha. Ifigênia, aos trinta anos, apesar de continuar bela, começa a inquietar-se com a ausência de seu príncipe consorte. Será que não estaria sendo exageradamente otimista, alimentando um sonho impossível, perdido nas alturas, prestes a despencar e reduzir-se a destroços? Preferiu não dar por esgotada sua esperança por tanto tempo acalentada nos braços de inocente imaginação que lhe prometia o céu e a terra.
Vamos dar um salto para reencontra-la aos cinquenta anos ainda atraente. Sim, atraente, mas não livre de ter sofrido as desastradas pinceladas do tempo, o indiscutível mestre da deformidade. leves rugas, pele menos sedosa, alguns quilos a mais entre outros sinais eram visíveis. Como estaria, àquela altura, a lidar com o seu mundo interior? Podemos imagina-la a vagar nas sombras da desilusão, arrependida de ter acreditado numa utopia e ter perdida a chance de viver como uma simples Ifigênia. Como pôde, por tantos anos, ser presa de devaneios? É que a inteligência, até mesma na genialidade do conhecimento, inexplicável fenômeno, dá extraordinários saltos na escuridão para dar luz às trevas, deixa muitas vezes de perceber a simplicidade e a evidência das coisas. Era incrível que somente tão tardiamente tenha se dado conta de suas perdidas ilusões. Embora não fossem visíveis em seus olhos a tristeza, sua alma transbordava arrependimento e melancolia. Seus dias, até a morte, nua de esperança, não teriam mais o colorido e acalento da suas lamentáveis divagações.
Estava agora a exercer a função de chefe de gabinete do prefeito Oto Silva, o popular Silvinha em seu primeiro mandato aos cinquenta e oito anos. Foi uma indicação pessoal. A outrora intocável Ifigênia iria tardiamente conhecer o que ignorou na adolescência. Oto era um frequentador de bares e nunca deixou de gozar as boas farras regadas a bebidas e mulher. Casado, sem alarde de fidelidade conjugal, vivia um casamento aparentemente normal.
Tendo ao lado do seu gabinete a sala de Ifigênia, comunicavam-se com frequência em razão do exercício do cargo. Enquanto não se consumava o seu intento, tornavam-se cada vez mais íntimos, amaciando o caminho que levaria a vitima para o abatedouro. De vez em quando, encerrados os trabalhos, o prefeito a chamava para o seu gabinete sob o pretexto de conversarem sobre o ocorrido no expediente e outras amenidades. Em um desses encontros, mais desinibido pelo efeito do álcool após uma reunião com vereadores de sua base, enveredou a conversa numa direção intimista sobre a vida de Ifigênia. Para os poucos que desconhecem, aquele que exerce o poder tem condições de arrebanhar mulheres o suficiente para formar um harém. Não precisa ser um galã. Até um quasímodo é assediado, sacrificam-se, viram o rosto à sua feia deformidade para alcançar o favor desejado.
Para abreviarmos esta narrativa, vamos logo aos conformes para informar que depois de ter pavimentado com esmero o itinerário, dando-lhe um generoso aumento salarial, conseguiu leva-la ao motel. Instalados num confortável quarto, pediu de imediato uma garrafa de champanha, o segredo mais eficaz para violar o tesouro de uma rara virgindade. Não sendo tímida, a intimidade sexual, ausente até aquele dia, não podia impedir de mostrar-se um tanto recatada. Ao término da segunda garrafa, iniciados os beijos e abraços, adeus inibição. O Oto, não bastasse a idade que ajudava a evitar o imediatismo do orgasmo, era um conhecedor teórico e prático para fazer com paciência e requinte a arte do sexo. Foi o que fez e não fosse a sua experiência de muitas vezes ter se deparado com mulheres frígidas, teria naquele dia começado a desconfiar de suas infalíveis habilidades. A Ifigênia foi mais uma a fazer parte de seu rol de acalentadas expectativas sexuais frustradas. Apesar disso, não era de ferro, num crescendo de sua excitação conseguiu consumar o seu objetivo.
Outros encontros que deveriam ter sido frequentes foram apenas fortuitos. Ela entendeu o porquê. Era imprescindível a fogosidade da mulher para agradar e fascinar o seu companheiro. Chegou à conclusão que a beleza não era tudo. Que seus sonhos da adolescência pecavam em ter uma visão unilateral e individualista. E se de fato tivesse encontrado o seu príncipe, teria sido ele feliz ao lado de uma bela figura feminina, esculpida numa pedra de gelo? Tardia reconsideração de pensamentos, incapazes de recuperar o tempo perdido. Malditas digressões que a mergulharam num mar róseo de falsas ilusões, levando-a a uma existência estéril, só e desolada numa triste e sofrida solidão.
