A ciência do direito, lidando com as ações do homem, sem qualquer afinidade com a exatidão matemática, é um palco onde se digladiam, numa batalha sem fim, a justiça, a injustiça e, no topo da representação cênica, as contradições. Mas não vamos ser radicais a hostilizar as contradições porque contraditórios somos todos nós, assim como a vida é contradição, sua razão de existir. Isso não significa que não devemos, em nome da racional coerência que deve pautar nossa vida, nos preocupar com ela, especialmente quando surge com as cores da insensatez e incoerência, emanada do poder público, atentatória ao interesse da sociedade.
A propósito, queremos nos referir a uma terrível contradição, entre a teoria e a prática, que foi a criação da habilitação para fim de adoção. E o mais grave é que não bastasse como medida que deve preceder o processo de adoção, é obrigatória. E onde estão as exceções? É certamente impossível que uma lei por mais abrangente que seja o seu articulado, que não deixe escapar fatos que acontecem numa profusão de modalidades. Não é o caso da habilitação, bem previsíveis as mínimas circunstancias nas quais podem ser encontrados os adotandos. Nós, pessoalmente, somos contrários a habilitação. Não deixando de contemplar a exceção, o Superior Tribunal de Justiça isenta os adotantes que estão com os adotandos há mais de dois anos. Nem esta exceção deixa de ser um exagero, um excesso de zelo como se a afetividade pelo adotando necessitasse de tempo tão longo para ser sedimentada. O nascituro, que desde o ventre materno recebe através da emotividade de seus pais todo carinho e ansiosa expectativa pela sua chegada, é o mais importante acontecimento de suas vidas. Semelhante estado de espírito, sem nenhuma dúvida, faz-se presente nos adotantes que sentem a necessidade de preencher um vazio interior e dar um sentido à vida, que acontece através dos filhos e de uma família constituída.
Ouvíamos com freqüência no noticiário televisivo, quando se referia ao problema da adoção, a promessa das autoridades que iriam criar mecanismos para agilizar os referidos processos. E o que aconteceu? Perdido o rumo das boas intenções retrocederam, imaginando que estavam dando um passo indispensável à segurança e seriedade da adoção. Somos conscientes da responsabilidade que deve revestir a adoção, vez que em jogo se encontram vidas humanas fragilizadas, desgarradas da sorte e que merecem uma compensação pelo triste fado do nascimento.
Achamos que todo pedido de habilitação quando os adotantes, de direito ou de fato, têm a guarda do adotando, pode ser feito cumulativamente com o de adoção, pois, chegada a fase do estudo social amplo, concluindo-se favoravelmente em prol dos mesmos, possa o juiz, se também convencido, julgar desde já pela adoção.
Sem outras considerações, vamos a um caso concreto que deveria, por parte do Superior Tribunal de Justiça, fazer parte das exceções. Uma gestante solteira, com paradeiro não sabido do companheiro, tendo outros filhos, criados com dificuldade, encontrando-se no sexto mês de gestação conhece um casal sem filhos e pelas boas referencias que teve do mesmo, ele engenheiro, funcionário público federal e ele assistente social, contratada pelo município, promete-lhe o nascituro para adoção. Dois dias após o parto, quando teve alta da maternidade, cumpriu o prometido. Uns trinta dias depois deu entrada com pedido de habilitação. Processo em andamento, chegou a fase do estudo social dos autores, pronunciando-se favoravelmente pela habilitação o representante do Ministério público. Junto ao estudo social, seguiu uma declaração da genitora reiterando a adoção e a razão porque a fez. O que vem a seguir?
O próximo passo é a obrigatoriedade dos autores, como acontece com os padrinhos de batismo, a participarem de palestras a serem ministradas por psicólogo e assistente social para depois, feita uma avaliação pelo juiz, ser julgada. O art. 152 da Lei nº. 12.010 de 03/08/2009, que concebeu a homologação, diz textualmente: “è assegurada, sob pena de responsabilidade, prioridade absoluta na tramitação dos processos previstos nesta lei, assim como na execução dos atos e diligencias judiciais a eles referentes”. Acontece que, contrariando a recomendação acima, o juiz titular da 1ª Vara Cível, da Infância e Juventude, as palestras não estão sendo realizadas pela ausência de estrutura, isto é, não definidos os palestrantes, o local e horário, prevendo que possa solucionar o problema dentro de trinta dias.
Ora, a lei é de dois mil e nove. O que podemos deduzir? Por que não está prevista na citada lei a maneira de se montar a estrutura acima referida? Não está porque faz parte do gosto pátrio pela irresponsável improvisação. Essa marca registrada faz com que nossos legisladores acreditem que nossas leis têm o condão mágico ou milagroso para tudo resolver. Vamos dar uma sugestão. Por que não fazer um convênio com a diocese? O pároco, tarimbado em suas preleções aos padrinhos de batismo e com certeza dispondo do conteúdo teórico para orientar os adotantes, pode muito bem, sem ônus, substituir os referidos profissionais. Seguramente, para satisfação geral, teríamos o andamento e a rápida conclusão dos processos.
A verdade é que a desventura de muitas iniciativas reside, além da desastrosa improvisação, na mediocridade e incompetência do autor ou autores que pretendendo consertar o soneto, torna a emenda pior do que o soneto. Foi exatamente o que aconteceu com o processo de adoção que, sem necessidade de um apêndice para aperfeiçoá-lo, o tem com um aleijão que é a coxa habilitação, procrastinadora, retrograda e inútil. Admitimos as pequenas contradições, facilmente suportáveis, não as que comprometem a inteligência e beiram às raias da insensatez.
Para se consumar com segurança uma adoção basta que se faça, no curso do processo, uma rígida e criteriosa avaliação dos adotantes. Pretender ir além disso, que já é uma norma, não tem outra explicação senão no reflexo condicionado adquirido pela mania dos nossos legisladores em inflacionar de leis, como se fossem enfeites, o nosso país. Assim, engendrada por maníacos por leis, a habilitação, órfã de uma nobre e elevada inspiração, tinha que resvalar na excrementícia respiração para emporcalhar as mais acalentadas expectativas.