Graciano, cáustico observador da malicia e tramoias da natureza, em momento inesperado começou a desnudar o amor, reduzindo-o a uma mera abstração poética e, como era de se esperar, despejou todo o seu fel sobre o mais belo e decantado dos sentimentos. Embora discordando do seu exacerbado realismo, parecendo ter origem numa desastrada experiência amorosa, passo a reproduzir o pretenso virtuosismo da sua argumentação rude e agressiva. Para muitos poderá aparecer abominável, mas posso afiançar, conhecendo-o tão bem, exprime sua real convicção.
Conta atualmente com setenta e um anos de idade e dois de viuvez. Professor secundarista de historia, ao aposentar-se procurou o refúgio de uma praia tranquila para usufruir o saldo restante da sua vida. Reside numa casa relativamente ampla e confortável para eventualmente receber os amigos, filhos e netos. Tem apenas a companhia de uma velha empregada para os trabalhos domésticos. Não sei por que ainda não se decidiu por uma nova companheira. Quando biritava era amigo de uma boa conversa e tinha um gosto especial por temas polêmicos que normalmente destoavam da opinião comum, como se verá.
Fazíamos uma caminhada matinal pela praia. Cumprida a jornada, sentamo-nos na areia de frente para o mar. Graciano fixou o olhar para o distante horizonte que lhe despertou uma súbita disposição filosófica. Depois de uma pequena pausa diz que dificilmente alguém ao contemplar a beleza imensa do mar, não se torne introspectivo e faça indagações da sua origem.
Achei por bem cortar sua inspiração para fazer divagações sobre cosmologia, dizendo-lhe que naquele momento era mais agradável ver o desfile de belas sereias. Depois de contemplar por bom tempo corpos desengonçados na sua maioria, torci para que algo especial aparecesse para deleitar-nos com sua beleza. Não demorou muito, como se tivesse sido atendido por uma prece, começamos a vislumbrar um corpo feminino e que á proporção que se aproximava revelava um rosto bonito e um corpo belamente esculpido. Seus trejeitos sedutoramente femininos dava-nos a convicção de que aquela jovem era a mais pura personificação da sensualidade.
Para mexer com seus brios machistas, verbalmente afoito nessa área, perguntei-lhe se conseguia dar conta do recado com aquele pedaço de pecado. Sem demonstrar surpresa com a minha indagação, de cunho brincalhão, achou por bem fazer uma observação. Disse que naquele momento ao ver a bela jovem preferia fazer um retrospecto para ver a diferença entre o passado dos seus dezoitos anos e o presente setentão. Na sua juventude, sentiria a fúria libidinosa capaz de fazê-lo transar no primeiro contato, de quatro a cinco vezes e, em consequência da forte atração e certamente me confessaria estar perdido de amor. Hoje, com a calma imposta pela reserva no limite, predomina a calma, o sexo da imaginação com o requinte de uma jantar a luz de velas. Apesar disso, longe de achar que estava amando e apaixonado, exatamente por estar ausente a impetuosidade sexual.
O velho guerreiro leva consigo a convicção de que o amor conjugal sem o prazer sexual não passa de uma quimera, embora aparentemente ausente na mulher pelo seu instinto agregador da família. A natureza, além de imprimir a tudo que é vivo uma força que luta pela sobrevivência, é uma atriz perfeita a seduzir o homem pela ilusão, fazendo-o que leve a tiracolo, com o prazer sexual, a crença de que o amor puro e duradouro existe. Sábio procedimento, pois, se assim não agisse, o que seria da espécie humana? Ela não existiria, vez que o homem é fruto do prazer, impossível que fosse da dor.
Os enamorados, absorvidos pelo encanto do idílio inicial, acreditam numa permanente lua de mel e não se dão conta, pela falta de experiência, que o seu romance, como toda história, tem começo, meio e fim com desfechos imprevisíveis.
No inicio puro deleite, no meio, algum resquício e no fim um exercício de paciência para suportar o enjôo e a rabugice da velhice feia e disforme, castigada pela lei da gravidade que faz tudo descer, transformando a beleza de outrora num corpo repelente coberto de pelancas. Se acrescentarmos a essas deformidades as inseparáveis enfermidades, percebemos quão triste é o ocaso de nossas vidas, descartadas como refugo ao som de um coral de lamentos e aflições. A essa altura, a quantos quilômetros de distancia se encontra o fugitivo amor? Existem casais afinados do começo ao fim, mas chegada à velhice os prazeres da juventude e uma longínqua lembrança e não representam senão dois irmãos que passam a viver, reciprocamente, numa enorme dependência afetiva. Protagonizam uma tragédia final da velhice digna de “Romeu e Julieta”, pois, desaparecido o primeiro o outro, sentindo uma extrema e insuportável solidão, logo morre como o último galho seco de uma árvore sem vida.
A literatura, voltada para temas românticos, continuará sempre atual e atrativa porque acena com um mundo ilusório de aventuras e inesgotáveis delicias. Quanto mais trágico e heroico o enredo a envolver os personagens, mais atraente se torna, aumentando a crença no verdadeiro amor. Acontece que lutar por um amor difícil não tem nada de heroico, pois, além da brevidade do tempo para o desfecho com o final feliz, está em jogo à paixão que tudo ousa e nada teme na conquista do ser amado. O verdadeiro heroísmo está em saber e poder, com o indispensável espirito estoico, suportar por toda vida um relacionamento a dois e que não bastassem os incidentes de toda ordem, tem de resistir a uma vida de apatia, sem a vivacidade e as irresistíveis tentações da juventude.
O amor conjugal é sinônimo de vitalidade e não passa de sexo travestido de encantamento, sonhos e delírios de emoções. È um personagem de dupla personalidade, um mascarado que atua com a espontaneidade de um comportamento angelical, de suave ternura e meiguice e do outro, quando contrariado pelo ciúme e o sentimento de posse , principalmente, age como um demônio encolerizado e assassino, capaz de cometer violência com requintes de crueldade. O sexo é uma necessidade, sentimos carência de afetividade, de companhia porque tememos a solidão, razão porque concluo que onde existe necessidade e dependência, não pode haver pureza de sentimentos, mas o egoísmo acima de tudo. Ora, se somos imperfeitos vivendo uma realidade de sentimentos em conflito, como pode emanar do nosso interior a perfeição? Em síntese, o amor verdadeiro só existe no amor impossível, no amor espiritualmente platônico, sem a consumação do desejo carnal, quando se ama apenas as qualidades espirituais da pessoa amada. Os enamorados contentam-se só com o fato de se amarem, como “Tristão e Isolda”, incapazes de realizar o amor enquanto existem.
Nesse ponto, saí do meu silêncio para perguntar-lhe qual a finalidade de semelhante amor em que os amantes não se juntam num frenesi amoroso, quer pelo simples prazer, quer pela lei natural da procriação. Respondeu-me que longe estava de ser adepto dessa modalidade de amor, imaginado na cabeça do filosofo Platão, que concebeu a existência das formas perfeitas que antecedem á encarnação do homem. É bonito de ver, mas impossível de ser, não passando de uma bonita pagina literária. Que preferia a caricatura do amor rasteiro, carnal e transitório, ao amor etéreo e celestial, capaz de consumar-se apenas no além.
Demolido o amor conjugal,achei por bem não instinga-lo a prosseguir fomos pegar o café da manhã e esperar dar dez horas para começarmos a degustar uma geladíssima cerveja na contemplação do mar.