O Brasil, não bastasse carregar o destino trágico dos contrastes, sofre de um distúrbio mental que lhe obscurece o raciocínio lógico que o impele, com frequencia, a cair no abismo do absurdo. Seguindo os passos dessa distorcida realidade, surgiu recentemente a chamada Lei da Ficha Limpa, que tenta impedir a candidatura dos corruptos. Semelhante iniciativa não passa de uma ingenuidade calcada na velha crença de achar que basta tão-só a excelência das leis para resolver todos os nossos problemas.
Criada a lei em referência, mesmo que fruto de um clamor popular, uma indagação de imediato se nos apresenta: não é ela a evidência de um monstrengo da contradição, à luz do parágrafo único, art. 1º da Constituição Federal? O que diz esse dispositivo? Que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes legais. Qual a conclusão a tirarmos? Que o eleitor é o único responsável pela escolha, boa ou má, de seus representantes, devendo tomar o cuidado para que sua preferência recaia sobre os melhores.
Não há necessidade, assim, da propalada Ficha Limpa. Se ela surgiu, foi como pedido de socorro, de um atestado de incapacidade de parte expressiva do nosso eleitorado. Como poderia ter outra causa,
quando temos um forte contingente de analfabetos? Eis um outro absurdo, risível por excelência,
que só poderia prosperar em nosso país. Se o analfabeto é aquele que não sabe ler nem
escrever, como pode desimcumbir-se do seu dever cívico de votar, quando se faz necessário o
requisito da alfabetização?
Naturalmente que a lei em tela, um autêntico aleijão para socorrer um eleitorado aleijado, não poderia impedir que o judiciário, especialmente o Tribunal Superior Eleitoral e o Supremo Tribunal Federal, mergulhasse num verdadeiro estado de ebulição com as mais díspares interpretações sobre a sua aplicação se imediata ou somente na próxima eleição. Pela falta do décimo primeiro ministro que se aposentou, tivemos no Supremo uma votação empatada. Foi uma divisão que se firmou entre os que pretendem ir ao encontro do anseio popular e os que, guardiões da lei, respeitá-la. Parecendo estar fugindo à lógica, achamos que as duas partes têm razão. Esse conflito poderia ter sido evitado se o Congresso Nacional, antevendo a possibilidade do seu surgimento, tivesse acrescentado um parágrafo, afirmando que quando se fizesse presente o anseio do povo para uma mudança na lei eleitoral, a sua vigência e aplicação seria imediata. O povo não é o supremo mandatário?
Em síntese, afirma-se com muita procedência que todo povo tem o governo que merece. A nossa política que em grande parte viceja no pântano, tem como causa o patrocínio de considerável parcela de eleitores desqualificados que contribuem para a sua permanência no charco. Bem a propósito, existe realidade mais deprimente e revoltante do que assistirmos a reeleição de tantos gabirus, não obstante a exposição de seus nomes nos meios de comunicação? Ou quando Dom Alexandre, nosso ex-prefeito, renunciou prematuramente sem o amparo de uma razão consistente, num claro desrespeito aos seus eleitores, ter recebido uma votação muito além da expectativa? O que foi feita, ilustre eleitor penedense, da sua capacidade crítica e de avaliação? Será que você tem a índole da Amélia? Do escravo que chegou a perder a consciência da escravidão?
Haja Ficha Limpa para clarear tanta cabeça embaçada e perdida na escuridão! Disso tudo concluímos que embora o objetivo da Ficha Limpa seja nobre, ela não tem, na essência, razão de existir. O que precisamos é melhorar a qualidade da educação. Que vá além do simples ler ou escrever e se estenda à interpretação de um texto, mesmo simples. Melhor ainda se acompanhada de informação da nossa realidade, como mudá-la, da importância e responsabilidade do voto. Que seja abolida essa vergonha do voto do analfabeto. Será que já não basta a ignorância doutoral de tantos que se acham esclarecidos?