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Fé: A Negação do Racional

A fé, um autêntico Quixote, luta no mundo das trevas, pretendendo levar às pessoas uma luz que ela própria desconhece. É uma visão imaginária do que está na total escuridão: Deus, mistério, inacessível e inexplicável. Oradora insuperável na arte de seduzir e hipnotizar, transforma os que a seguem em rebanho das belas ilusões que migram às cegas para o El Dorado do sem fim. Em outras palavras, é uma pregadora que fala aos homens a respeito de um céu que desconhece e para o qual ninguém irá para lá. Ancorada nas chamadas escrituras sagradas, oferece aos que se sentem órfãos em um mundo brutal, desumano e hostil, como a mais sedutora personagem a narrar contos de fada capaz de anestesiá-los, fazê-los adormecer no sono da inocência, sonhar e acordar no maravilhoso mundo novo das Del celestiais.

Farei breve referência, quer pela incompatibilidade com o local da publicação, quer principalmente pela minha ignorância em teologia como será notada pelos doutos da área, sobre pontos que dão um nó górdio no meu pensamento. Atrevo-me, no entanto, seguindo o que disse, parece-me que Péricles, que embora somente poucos possam dar origem a uma democracia, todos somos capazes de julgá-la.

Vamos pelo começo. Segundo o gênesis, Deus criou o homem segundo sua imagem e semelhança. Explica-se pela teoria da analogia da causa e efeito, isto é, a criatura herda traços do criador. Naturalmente que respeitada à distância entre o absoluto e o relativo. Assim, quando dizemos que Deus é infinitamente bom, devemos concluir que também é infinitamente mau. Nossas virtudes e defeitos estão no relativo. As manifestações violentas da natureza, terremotos, maremotos, vulcões e furacões, entre outras, dizimando indiscriminadamente vidas humanas, são exemplos da maldade superlativa do criador. Acontece que nada está isento de conflitos. O nosso planeta, sem exceção, foi fruto de colisões e, segundo os astrônomos, mais cedo ou mais tarde não escapará do impacto de asteróides, cometas e meteoros que extinguirão a vida por completo. Por outro lado, nenhum animal sobre a face da terra, na água ou no ar, está livre de predadores. Não existe a permanente monotonia da paz.

Voltando à semelhança física do homem com Deus, acho que podemos muito bem concluir que não existe semelhança, mas igualdade. A propósito, observemos o que dizem os evangelhos sobre a ressurreição de Cristo. Lucas, por exemplo, cap.24 vers. de 24 a 43, narra sobre o seu aparecimento aos apóstolos em seu corpo físico, com os sinais das chagas da crucificação. Todos o ouviram e tocaram em seu corpo. Comeu peixe e um favo de mel. Segundo Lucas, antes de subir ao céu em definitivo, por quatro vezes comeu com os apóstolos. Bem, nós comemos, digerimos e depois excretamos. Devemos concluir que Cristo fez a sua digestão, etc. lá no céu. Como será a consistência do céu ? Sólido ou rochoso, gasoso ou numa dimensão invisível ao nossos olhos ?

Nas aulas de catecismo, quando crianças, aprendemos que Deus é espírito. Acontece que Cristo subiu ao céu em seu corpo físico e com o mesmo, retornará um dia a terra. Ora, se a trindade tem a mesma essência, são fisicamente iguais. Corroborando a esse respeito, disse Isaías: “Vi o senhor assentado num trono alto e exaltado, e a aba de sua veste enchia o templo”. Não parece um ingênuo conto de fadas? A concepção de Deus dessa forma é transformá-lo num nanico demasiadamente humano. Nunca convergem, na prática, as grandiosas e eloqüentes definições a seu respeito e a fragilidade de suas ações. A bíblia parece traduzir tão-só as agruras de um povo e uma preocupação de agradar a um Deus muitas vezes irado, castigador e mal humorado, condição para se atingir uma vida oposta ao sofrimento. Ao encontro desse pensamento, ilustra muito bem o apocalipse: “E Deus limpará de seus olhos toda lágrima; e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor; porque já as primeiras coisas são passadas”. Os judeus, sob o jugo dos romanos, não podia o autor imaginar melhor antídoto ao sofrimento.

E pergunto: É a bíblia um livro sagrado? Em sentido positivo, pessoalmente, nunca em tempo algum, acho que poderia ser diferente do que imaginamos o seguinte; E seus autores tivessem vivido numa terra de fartura, sem grandes sofrimentos e dispusessem dos conhecimentos científicos da atualidade, qual teria sido o seu conteúdo? Teria ela existido, não se teria afirmado que Deus, para povoar a terra, criou Adão e Eva. Outros casais se faziam necessários sob pena de sermos um produto do incesto e da consangüinidade, fato que teria degenerado e extinguido o homem. Que não fez o mundo em seis dias e no sétimo descansou. Não posso conceber um Deus que cansa. Esclarece-nos a astronomia que além da nossa galáxia, com milhões de estrelas, planetas e outros corpos celestes, existem outras aos milhões, maiores ou menores. Parece-me uma empreitada que está a milhões de anos luz de distância de um Deus com características pagãs, quase nos limites do homem.

E o que dizermos da Trindade? Como explicá-la? Três pessoas diferentes com a mesma essência. Em outras palavras, segundo opinião de alguns, o Pai representa a lei viva e imutável; o Filho, a razão e a sabedoria; o Espírito Santo, a potência criadora e fecunda. Quem engendrou semelhante idéia? Os países, na sua quase totalidade, adotam os três poderes, executivo, legislativo e judiciário. Perfeitamente admissível. Podemos dizer o mesmo do triunvirato divino? Do ponto de vista monoteísta, só podemos admitir a existência de um único Deus. Duas verdades não podem coexistir, uma tem de excluir a outra. Deus, o todo poderoso, tem necessidade de dividir atribuições? Pela forma como criou a terra, dá para nos convencer.

Não menos absurdo, na minha tacanha compreensão, é o tráfico e inútil sacrifício de Cristo. Qual foi a sua finalidade? Salvar a humanidade, resgatando-a do pecado original, cometido por Adão, o bravo Santo Adão? Tem sentido que gerações subseqüentes paguem pecados da primeira? Ninguém pode ser punido por um crime que não cometeu. Até uma criança é capaz de perceber essa regra. Muito menos alguém pode sofrer as penas no lugar do delituoso. Não bastassem essas incoerências, inconcebível que concordemos com o sacrifício do filho de Deus para consertar um pseudo erro da sua criação, o pecado. Teria sido mais fácil ao entendimento que Deus, ao por Adão e Eva no éden, quis testar a qualidade da sua obra, isto é, se Adão era um homem na mais alta expressão da palavra. Nesse sentido, Adão não o decepcionou. Não demonstrou ser um acomodado e retardado mental. Acometido pela inquietação, prisioneiro do paraíso em seu insuportável enfado, rebela-se, foge e dá o primeiro grito de liberdade em busca do conhecimento e outras formas de vida. Cristo não salvou coisa alguma.

Como é possível imaginar o homem sem pecado. Sem a desobediência de Adão, a curiosidade que estimula a imaginação, a criatividade e a realização pessoal, o homem teria continuado a pastar no paraíso. Se o homem sofre, é natural que queira escapar do sofrimento e busque o prazer, bem que mais persegue para atingir a felicidade. Mas dentro de certos limites, da moderação como receitava Epicuro, que não deve ser confundido com o epicurista vulgar. Toda ação resulta numa reação na mesma intensidade. Daí porque, se fosse possível dar ao homem a possibilidade de viver no paraíso, disse Schopenhauer, a primeira coisa que ele faria ao sair era mergulhar no inferno. Não podemos pensar no bem se não existisse o mal. Como avaliar a beleza se não houvesse o feio? O alto sem o baixo? E assim por diante, em tudo se fazendo presente a polaridade de forças e valores.

Por fim, avaliando o sacrifício de Cristo, é interessante observar o comportamento do Deus do cristianismo e Zeus do paganismo grego sobre a imolação. A lenda da licantropia, na Grécia antiga, dá algumas versões sobre a mesma. Uma delas diz que Licaon, rei da Arcádia, sacrificou um de seus filhos a Zeus. Este, horrorizado, o transformou, como castigo, em lobo. Se Zeus ficou chocado com o filho alheio, inconcebível que fosse capaz de sacrificar o seu. Eis um gol a favor do paganismo, enquanto o Deus cristão cometeu o mais radical e cruel sacrifício pagão.

Em síntese, penso, sob o aspecto puramente racional, que as religiões deveriam ser, atualmente, uma memória do passado. Suas premissas têm apenas vantagem de satisfazer a imaginação infantil dos sedentos de uma vida eterna colorida. Paraíso e inferno e vida eterna são mitos que fogem às leis naturais. Tudo que nasce, morre. Até as estrelas, na longevidade de suas vidas de milhões e bilhões de anos, se extinguirão. O nosso sol, que está na metade de sua vida, restam-lhe ainda uns cinco bilhões de anos. Quando passar a ter uma cor avermelhada e em processo de expansão, atingirá a terra, incinerando-a e extinguindo a vida. Transformado em uma estrela de grandeza inferior, a terra, fora da sua gravitação, passará a vagar a esmo na imensidão do frio e escuro universo.

Só existe, portanto, uma eternidade que é a eterna sucessão das coisas. O que importa, dizia Nietzsche, não é a vida eterna, mas a eterna vivacidade . No teleférico que conduz a vida entre os dois pólos opostos, vivencio, na medida do provável ou improvável destino, um pouco de cada um. Eis porque prefiro viver na diversidade infernal desta vida, a viver na insipidez e monotonia infernal do paraíso.