
Realizada sempre na sexta-feira que antecede o carnaval, a cerimônia atrai milhares de pessoas ao Rosário Estreito - Foto: arquivo
A cidade de Penedo, localizada às margens do Rio São Francisco, se destaca mais uma vez na região com a tradicional “Lavagem do Rosário”, evento que marca oficialmente o início dos festejos no município. Realizada sempre na sexta-feira que antecede o carnaval, a cerimônia atrai milhares de pessoas ao Rosário Estreito, onde orquestras de frevo e bonecos gigantes se revezam, levando alegria e cultura aos foliões. Neste ano, a festa acontecerá no dia 28 de fevereiro e contará também com um desfile de blocos.
Porém, poucos conhecem a história por trás dessa celebração. A historiadora Cristina Sanchez, apaixonada pelas tradições penedenses, realizou um extenso estudo sobre o significado da Lavagem do Rosário, revelando suas raízes históricas e religiosas.
Confira:
O Porquê da Lavagem do Rosário
A Capela de Santa Ifigênia
Inicialmente, no século XVII, no local onde hoje se encontra a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, os negros (escravos e libertos) construíram uma capela em adoração a Santa Ifigênia, a primeira santa africana. Ifigênia era de origem nobre, filha do rei da Etiópia.
Atualmente, a imagem encontra-se ao lado direito do altar-mor e traz em suas mãos uma casa, simbolizando o mosteiro que ela fundou e que foi salvo das chamas pela invocação do nome de Jesus. A heroica santa tornou-se símbolo de proteção contra incêndios e também defensora daqueles que buscam a salvação do lar e lutam para ter uma casa própria.
Segundo Silva Caraotá, em sua *Crônica do Penedo*, datada de 20 de dezembro de 1871, há referências à existência de um “livro de entradas das antigas”, onde se encontram registros dos irmãos do Rosário dos Pretos datados de 1634.
Analisando o acervo de mapas do período da ocupação holandesa no Penedo, constatamos a existência de uma “habitação” no local da referida capela, indicando, consequentemente, sua existência e provável funcionamento. O mapa data de 1637, ano em que Maurício de Nassau edificou na Vila do Penedo do Rio São Francisco o famoso Forte Maurits, para a defesa de seus domínios.
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos
A devoção a Nossa Senhora do Rosário propagou-se pelo mundo, sendo levada também ao Congo (na África) e introduzida no Brasil desde o início do século XVI por missionários portugueses.
A Irmandade dos Homens Pretos funcionava como uma espécie de associação, com a finalidade de preservar as tradições afro-religiosas e aliviar o sofrimento imposto pelos brancos, buscando auxiliar a integração da população negra à religiosidade da sociedade branca. Os irmãos (escravos e libertos) procuravam adaptar seus rituais ao catolicismo, conservando em suas procissões símbolos religiosos representados por figuras ornamentadas, bonecos e alguns animais (boi, jacaré, burrinha, elefante etc.). Incluíam também o cortejo cerimonial africano da coroação do rei e da rainha, cordões de damas de honra, seguidos por músicos, batuques e danças.
Não se sabe ao certo quando foi criada a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos do Penedo, mas sabe-se que, em 1634, ela já existia. Portanto, é uma tradição da cidade com mais de 370 anos e um dos mais fortes elos propulsores da cultura afro-penedense.
Origem do Rosário
A devoção a Nossa Senhora do Rosário tem sua origem entre os religiosos dominicanos por volta de 1200. São Domingos de Gusmão, inspirado pela Virgem Maria, deu ao rosário sua forma atual. Nossa Senhora do Rosário foi a mais popular das invocações marianas entre brancos e negros da colônia brasileira. Foi escolhida como orago de muitas confrarias e irmandades criadas para promover a alforria dos irmãos escravos e garantir-lhes sepultura em solo sagrado.
No Penedo, os escravos recolhiam no mato certas contas acinzentadas denominadas “Lágrimas de Nossa Senhora”, com as quais confeccionavam terços e rosários para suas orações, encontrando, na devoção, consolo nos braços misericordiosos da Mãe Branca do Rosário.
O Sincretismo Religioso
A lavagem das igrejas é uma tradição de origem portuguesa, absorvida pelo sincretismo africano. Veio de Portugal nos tempos do Brasil Império, quando o povo fazia penitências e promessas aos santos, varrendo, lavando, enfeitando e zelando as igrejas. Da África, os escravos trouxeram a cerimônia das “Águas de Oxalá”, uma procissão que representa a jornada de Oxalá, acometido por injustiças ao longo de sua caminhada ao reino de seu filho.
A lavagem do adro (terreno em frente à igreja) tem fundação nas raízes afro-penedenses. A primeira lavagem da atualidade ocorreu em 2005, realizada pelo Babalaorixá Fernando Oiá Belegum, que iniciou a retomada das antigas homenagens à Mãe Branca do Rosário. Pai Fernando tem se esforçado para resgatar as tradições afro-penedenses, seguindo à risca os antigos cerimoniais africanos. O cortejo parte da Igreja do Senhor Bom Jesus dos Pobres e segue até a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, entoando louvores em dialeto africano, sempre às sextas-feiras que antecedem o carnaval.
O Folclore, a Cultura e a Religiosidade Afro-Penedense
Dentre as tradições do período da escravidão, destacam-se as Taiêras, um cortejo dançante formado por africanas vestidas com turbantes brancos, colares de contas coloridas, saias rodadas e chinelos de salto. As Taiéras do Penedo eram as mais expressivas de Alagoas.
A cidade do Penedo sempre teve sua devoção maior voltada para Nossa Senhora do Rosário, que, com seu manto de ternura, acolheu a todos os filhos, sem distinção de raça ou credo. A lavagem da escadaria do adro da Igreja do Rosário Largo foi uma iniciativa do governo municipal para resgatar e preservar as tradições afro-penedenses, impedindo que seu legado histórico caia no esquecimento.