Agáton, autodidata de temperamento introvertido, sob o efeito do álcool abria a comporta do silêncio e transformava-se no oposto do seu natural, num piadista com um grande senso de humor. Quando um tanto alto, era preciso que se encontrasse um meio para abreviar-lhe o discurso, a fim de que outros pudessem falar. Fazia parte, esporadicamente, da turma que nos fins de semana gostava de um bom bate-papo, saboreando uma gostosa loira suada. Não existia o conservadorismo de frequentar o mesmo bar.
Num certo sábado, sem os demais parceiros, fomos a um local onde se tocava música ao vivo. Era um ambiente de terceira categoria, muita mulher e um bom tira-gosto. Como tal, a freguesia e a música à altura do meio, funcionava na penumbra e lembrava um cabaré. Era exatamente o que queríamos para nos recordar do passado estudantil e o nosso contato inicial com as prostitutas. Era um triste quadro social que exibia o descaminho de muitas jovens ingênuas, especialmente da área rural, que seduzidas e abandonadas, inclusive pela família, buscavam na prostituição a sobrevivência. Era o que, com muita tristeza, nos relatavam. Mas alimentavam dentro de cada uma o desejo de um dia ter a sua casa e família.
Somente naquele dia percebi o alcance das palavras de Balzac quando dizia que podíamos abandonar uma mulher que se vende, mas que não temos o direito de abandonar uma virgem que se dá, sem compreender a extensão do seu sacrifício.
Bem, como era de se esperar, predominava no recinto o típico bolero do amor trágico, ao gosto dos chifrudos. Já pelas tantas da noite, Agáton, com o pote além da metade, a tagarelar sem fim, achou por bem, como se fosse um entendido no assunto, a tecer comentários sobre a música brega e seu efeito sobre as pessoas. Não houve alternativa senão deixá-lo à vontade, tornando-me apenas um mudo e curioso ouvinte.
Observe a plateia. Aquele ali, sozinho e cabisbaixo, bebe como quem está a lembrar-se de um amor perdido. Aquele casal, na outra mesa, está sempre a trocar caricias como preliminares que inevitavelmente levarão à cama. Veja aquele ali, no meio do salão, sozinho a dançar lentamente o seu bolero, como quem está com a mais atraente das mulheres. Outros ali gritam a cada nova musica que toca como se fosse a melhor. Cada qual, aqui, sente e reage segundo o seu estado de espirito, não deixando de emergir o passado como depositário de uma salada sentimental. Mas o que mais me chama atenção, quando ouço este tipo de musica, é entender porque, apesar de chula a sua letra na maioria das vezes, ela mexe com o sentimento e o romantismo.
O normal não seria que somente os chifrudos, os que de alguma forma perderam um grande amor ou os que nutrem a esperança de tê-lo um dia serem por elas sensibilizados? Qual a razão dos que estão fora desse circulo, também, preconceitos a parte, serem por ela fisgados? Será que existe em nós um sentimento de empatia com os deserdados do amor? Será que temos em nós uma pontinha de inato masoquismo amoroso? Seja lá o que for, a verdade é que quase todos nós, de vez em quando, somos invadidos pelo mais dolorido dos sentimentos que é o aparecimento de uma inesperada nostalgia e uma saudade indefinida. Como explicar esse estado de espírito? Acredito que a razão, como dizia Albert Camus, é que existe dentro de nós a nostalgia do caos que precedeu a criação ordenada do universo. O incontestável, meu amigo, é que a musica, a arte por excelência pelo poder do movimento, inexistente, nas demais, é uma voluntariosa maestrina que surge no cenário existencial a nos conduzir, a seu bel prazer, para a mais elevada espiritualidade, para a alegria e a paz celestial ou fazer baixar o astral, submergindo-nos no sofrimento da infernal melancolia.
O mesmo não acontece, por exemplo, com a pintura, especialmente a chamada abstrata, feia, parada e sem vida, contendo um pseudo significado plantado no inconsciente, cuja interpretação, ao gosto da pseuda intelectualidade, sabe fazê-la de forma enfatuadamente elegante. A música, ao contrário, sem necessidade de interpretação vem ao nosso encontro. Poucas pessoas gostam tanto da musica quanto eu. E a razão é a multiplicidade de sentimentos que em poucos segundos ela pode produzir nas pessoas. Assim, o movimento lento da música clássica, conduz-me à paz e à reflexão. A musica sacra, o coral gregoriano na suavidade do seu canto, causa-me um dilaceramento interior como se tivesse o efeito de um solvente a diluir o corpo e a alma a perder-se na imensidão do espaço. Até imagino que Deus na sua incessante faina de expandir o universo, o faz ao som de uma musica a altura de sua divindade.
Volto a musica brega e o seu efeito sentimental. Veja como se encontra o ambiente, cada vez mais alegre, incrementado pelo álcool. O bolero, em si, seja qual for o conteúdo da letra, é um ritmo que apimenta o romantismo e a sensualidade. Também traz à tona lembranças reais para uns e o saudosismo indefinido para outros. Nenhum outro acena com tanta força para impulsionar dois corpos a se juntarem num frenesi de paixão amorosa. É pura sensualidade. É por isso que a musica brega esbanja em suas letras um misto de tapas e beijos, um autêntico sadomasoquismo amoroso, preenchendo com muito ardor as excentricidades do amor, ao gosto de cada um. E viva a musica brega! Como gosto de aprecia-la, degustando uma loiríssima suada e ouvindo seus desabafos, lamentos, esperança e confissões de amores perdidos e traídos!
De repente, como se tivesse tomado um susto, para de falar. Logo depois, exclama: veja quem está chegando! É a Daphne dos meus pecados, marco das minhas aventuras do passado. Parceiro, desculpe-me, tenho de ir à luta. Toma o último gole e a passos largos vai ao seu encontro. Cumprimentam-se. Sentam-se e minutos depois saem a danças.
Dei-me por satisfeito e fui embora. No caminho comecei a matutar sobre o que dissera o Agáton, achando que havia algo interessante em suas observações.