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Sergipe

Cresce tensão entre quilombolas e posseiros em Brejo Grande

Posseiros realizaram protesto no povoado Resina, território declarado quilombola

Quem tem a oportunidade de navegar até a foz do Rio São Francisco provavelmente desconhece o clima de tensão crescente nos povoados situados à margem do território sergipano. Ali, pertinho do encontro com do rio com o mar, em meio ao cenário paradisíaco, posseiros e quilombolas que viviam em harmonia não se entendem mais por conta do uso de terras.

A Rádio Penedo Fm (97,3 Mhz e www.penedofm.com.br ) e o portal de notícias aquiacontece.com.br estiveram no município de Brejo Grande para colher depoimentos dos moradores sobre o que está acontecendo naquela região. Ao site, José Ailton de Oliveira Lima declarou ter 49 anos, vinte dos quais residindo no povoado Resina, comunidade com 173 hectares certificados como comunidade quilombola, conforme informou o superintendente do Incra/SE, Jorge Tadeu Jatobá.

Desde que os remanescentes se instalaram no Resina, José Ailton afirma que não tem mais permissão para colher o resultado de anos de trabalho. “Eu morava num pedaço de terra com cerca de cem coqueiros, mas não posso mais ir pegar os cocos porque eles (os quilombolas) não deixam. Também vendi uma porção de galinhas, os porcos e minha criação de 80 cabras porque não tinha mais como cuidar dos animais lá”, lamentou Ailton, que passou a morar em outro povoado do município de Brejo Grande sem as condições que alcançou ao longo de duas décadas.

Fernando Vinícius - aquiacontece.com.brProtesto pacífico no Resina

Foi lá no povoado Resina que famílias que contestam o processo de desapropriação que não contempla os antigos moradores realizaram um protesto pacífico na última quinta-feira, 12. Os posseiros ressaltam que não são contra a presença dos remanescentes, muitos deles amigos de longa data de pescadores e agricultores residentes na mesma região do município que consta entre os piores em Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Sergipe.

Apesar da convivência, o encontro entre posseiros e quilombolas no Resina não é mais amistoso. Até durante um simples aperto de mão entre líderes dos dois lados, provocações foram lançadas no ar, deixando o clima tenso, situação que se repetiu na Fazenda Batateira, situada no Brejão dos Negros e desapropriada para fins de reforma agrária (um assentamento), mas atualmente ocupada por remanescentes de escravos negros e ainda com a permanência de um antigo morador (posseiro) no único imóvel de alvenaria da propriedade.

Líderes quilombolas não quiseram falar

Para assegurar o legítimo direito de defesa, líderes dos dois núcleos quilombolas foram procurados pelas reportagens da Penedo FM e do aquiacontece.com.br, mas preferiram não se pronunciar. No povoado Resina, a líder que não se identificou para o repórter retrucou as perguntas com questionamentos sobre outros assuntos relacionados às terras, por exemplo sobre o investimento da Norcon para Brejo Grande.

A empresa do ramo de construção civil adquiriu uma área próxima ao Resina para construir um hotel de luxo, projeto que sequer chegou a ser iniciado e não será mais erguido porque o local está dentro dos limites do território quilombola, terras de marinha, ou seja área da União, conforme explicou o superintendente do Incra/SE. Posseiros que viviam no terreno adquirido pela Norcon chegaram a receber casas em troca das antigas moradias, 16 famílias que estão em um conjunto habitacional que, segundo o presidente da Associação de Catadores de Caranguejo de Brejo Grande, José Fausto, foi concluído pelo Ministério da Pesca como parte do Centro Integrado de Pesca Artesanal (CIPAR), investimento que promove inclusão social, inclusive com cursos de capacitação realizados pela internet, dentre outros benefícios.

Da pobreza para a misériaFernando Vinícius - aquiacontece.com.br

“Nós sabemos que tudo isso faz parte da política de combate à pobreza do governo federal, inclusive o reconhecimento de comunidades quilombolas, mas estão tirando pessoas da pobreza que vão terminar ficando miseráveis”, argumentou José Fausto. Ele também questiona alguns procedimentos, como o cadastro realizado por iniciativa do padre Isaías Nascimento para identificar as famílias com perfil de beneficiário em processo de desapropriação, lista que orienta a distribuição de cestas básicas – atendimento mantido pelo Incra – e que teria distorções, como a identificação de posseiros na condição de quilombola.

Um caso que exemplifica a denúncia foi apresentado à reportagem. José Siriaco dos Santos, 39 anos, afirma que é pescador residente no povoado Carapitanga, casado e pai de quatro filhos com a esposa e mais quatro “fora de casa”. Ele disse recebe a cesta básica, mas não sabia que constava no cadastro na condição de quilombola. Esse tipo de distorção é avaliado como estratégia para ampliar o número de famílias remanescentes em Brejo Grande, ao ponto de já se acreditar que 100% do município será reconhecido como território quilombola.

Percentual incorreto

O superintende do Incra sergipano assegura que o percentual é incorreto. “Eu afirmo categoricamente que não engloba nem a metade do município”, enfatizou Jorge Tadeu Jatobá durante entrevista por telefone com a redação do aquiaacontece.com.br na manhã da última sexta-feira, 13. Ele acrescentou ainda que o laudo antropológico e o descritivo memorial do processo serão publicados no final do primeiro semestre deste ano. A partir do ato oficial, a contestação aos estudos poderá ser feita legalmente.

Na mesma data do contato com o superintendente do Incra, a juíza de Neópoles – outro município situado na região do Baixo São Francisco sergipano – concedia entrevista à rádio Penedo FM para falar sobre assuntos relacionados à disputa de terras em Brejo Grande (confira matérias na editoria Sergipe). A magistrada declarou que funcionários do Incra estão agindo sem observar critérios de impessoalidade e legalidade, visitando posseiros sem apresentar documentos que amparem a desocupação de imóveis, denúncias que também foram apresentadas ao aquiacontece e a Penedo FM por moradores de Brejo Grande.

Denúncias à Ouvidoria do Incra

As supostas irregularidades já chegaram ao conhecimento da Ouvidoria do Incra, segundo Jorge Tadeu, que se prontificou a conceder entrevista na rádio líder em audiência na região do Baixo São Francisco em data a ser agendada. Um dos relatos passados à reportagem descreveu a ida do funcionário Luiz Gonzaga (Incra) à sede da Fazenda Capivara, acompanhado por agentes da Polícia Federal, propriedade já cercada pelos limites descritos em levantamento do Incra e da Secretaria de Patrimônio da União (onde os proprietários não tem registro dos imóveis, segundo Jorge Tadeu Jatobá).

O administrador da fazenda Manuel Gama Pimentel, 56 anos, disse que na última terça-feira, 10, sua casa foi revistada sem apresentação de mandato ou qualquer outro documento. Do local onde seus avós viveram e ele e um filhos residem lhe foi dado o prazo de 24 horas para desocupação, segundo o morador mais conhecido Manelão. Acusado de atuar como jagunço e ‘testa de ferro’, ele ressaltou que os agentes da PF até o elogiaram pela forma como permitiu que revistassem a casa, mas acrescenta ter sido coagido por funcionários do Incra, situação reincidente, episódio também citado pela magistrada durante a entrevista na Penedo FM.

Manelão não foi o único a se queixar da forma como os servidores do governo federal estariam agindo em Brejo Grande. O pescador José Adeildo Ferreira Santos, 27 anos, mora pertinho da beira do rio, nas imediações do povoado Resina, pedaço de chão onde levantou uma casa de taipa, barro pisado com ajuda de moradores, mas construída praticamente somente por ele ao longo de três anos, com despesa de cerca de R$ 3 mil em material (telha, madeira e cimento para o piso da casa).

Fernando Vinícius - aquiacontece.com.br“Aqui é tudo de boca”

Nos fundos da moradia, há uma pocilga, coqueiros e a cerca instalada recentemente que agora limita sua propriedade. “Por causa dessa cerca, eu fiquei somente com um coqueiro, o resto não é mais meu”, lamentou o pescador que na manhã de quinta, 12, passou cinco horas em seu barco para pegar quatro peixes, todos pequenos. Pelo menos no dia anterior a pescaria foi melhor, rendeu cerca de 3 quilos de carapeba. “Aqui eles fazem tudo ‘de boca’, ninguém chega com um papel e ainda prejudicam a gente com essas cercas”, desabafou o pescador.

José Adeildo é conhecido como Deda, apelido igual ao do governador de Sergipe e por isso seus amigos já passaram a lhe chamar pelo cargo. “Aí eu digo: que governador sou eu se estou passando por um sofrimento desses?”, arrematou o pescador que se fosse levantar sua casa hoje, teria que caminhar cerca de meia hora por caminho livre. O percurso que fazia antes, atualmente fechado por cercas que em alguns pontos permitem apenas a passagem de uma pessoa, era feito em menos de 15 minutos.

Entre novos caminhos, cheios de obstáculos, pescadores, posseiros e quilombolas de Brejo Grande perderam a política da boa convivência. A comunidade pede atenção para a crescente tensão no município e teme que as desavenças ultrapassem o limite do tolerável e gerem casos de violência ou morte entre pobres que aguardam a promoção efetiva da chamada justiça social.