Pequeno, no Penedo recordo com alegria e com a ajuda de minha santa avó quando nesse dia celebrávamos o Corpo de Deus. Eu, garoto raquítico, amarelado e cheio de querulências era arrastado por uma tia “carola” para a Igreja de Santa Luzia onde saía religiosamente a procissão do Corpus Christi. Digo ainda celebrávamos, pois naquela época (não muito distante), todos nós estávamos imbuídos de uma aura de santidade bem diferente dos dias atuais. Minha avó, muito religiosa e crente das manifestações e do poder exercido pela religião, me reaviva hoje num diálogo nostálgico as lembranças de um préstito soleníssimo, onde após o interminável desfile das irmandades que ostentavam suas opas bem vistosas ornadas com fitas e echarpes, vinham também sobre o pálio carregado por seis autoridades gradas, a figura carismática do Santo Bispo que aparecia com suas vestes talares: “mitra com duas cúspides, capa de asperge bordada a ouro e a custodia onde se guardava fiel e seguramente o Corpo de Deus”.
Ela me faz saber ainda que a hóstia – esta era bem maior do que as que serviam na comunhão. E me traz à memória novamente a minha infância, onde o desejo de ser coroinha era constante, ainda mais quando nas Santas Missas dos domingos, (missas das crianças), eu avistava no altar, por além do Santo Padre, dois dos meus primos contemporâneos. E o pedaço de pão que eles auxiliavam na entrega para os fies me atiçava à curiosidade – “será que eles comem aquilo escondido?“ e “qual sabor deve ter o Corpo de Deus?” ficava matutando enquanto todos oravam em silêncio pleno.
Ainda nas procissões, os penitentes fiéis expressavam suas ladainhas nas ruas. Recordo que minha tia e um punhado de amigas acompanhavam descalças a procissão e eu não entendia quais pecados mereceriam tamanho sacrifício. Hoje pouco se vê e se compreende desse momento, e que roguemos aos céus não vir a ser apenas uma data a cada junho. Não falamos mais nos ritos, nos dobres gregorianos e como sempre, depois de tudo, o povo. “Os turíbulos impregnavam o ar com o cheiro do incenso toda vez que os coroinhas os balançavam, e por instantes parecia que estávamos chegando aos céus”.
Saudosa, minha avó afirma ter sido lindo o seu Penedo, e junto de tantas outras, é razão de sua imorredoura paixão. “Das janelas das casas, mantas de damasco e brocados balançavam ao vento e indicavam o status do proprietário”. As ruas eram cobertas com folha de mangueira e alecrim que ao serem pisadas, esmagadas, exalavam agradável perfume, que neutralizava o odor pútrido das sarjetas. Disso recordo ainda que junto de alguns amigos e de vizinhos, unidos enfeitávamos as ruas para a passagem do Senhor, colhíamos as folhas nos quintais fartos de mangueiras e as espalhávamos por quase toda extensão da antiga Rua Nova. Com a cal, pintávamos o meio fio do calçamento como se estivéssemos de fato num experimento de pintura medieval.
Contudo, corroboro a visão de minha avó de que ainda é lindo o nosso Penedo, mesmo lhe faltando as pompas e as circunstancias daquele tempo e ainda a liturgia e o encantamento que a fé propicia. E do mais, sei o quanto pode ser triste o mundo adulto e nesse a insensatez que invade o homem com sua falta de fé. Já não há tantas certezas, somente as dúvidas como caráter singular de quem aprendeu a conjugar a vida de forma distinta. Mas de uma coisa tenho certeza, da ciência de Darwin e de Nietzsche e da beleza quando avistei em Flandrin que fizeram de mim o que eu não queria.