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Como Bico Doce, eleitor Sábio e Ladino, levou umas lambadas

No palco da vida, o gênero humano apresenta os mais díspares figurantes, fazendo-se notar os chamados personagens típicos que, por alguma característica ímpar da suas personalidades, fazem-se notar em relação ao comum dos homens. As circunstâncias do meio, por sua vez, induzindo as regras da sobrevivência, formam seus atores segundo a aptidão de cada um. O meio política, por exemplo, oferece um campo vasto e fecundo ao surgimento desses personagens. Numa fotografia bem mais ampla, vamos focar o eleitor e o político. O primeiro representando, numa boa parte, o rebanho de presas ingênuas e incautas, e o segundo o impiedoso predador. Feroz no íntimo, o político predador apresenta-se travestido de cordeiro para melhor, na suavidade do trato e da persuasão, enganar a caça com a ilusão das falsas promessas. Entretanto, fazendo-se notar as exceções, é claro que nem todo político é um implacável caçador e nem todo eleitor é uma caça ingênua. É um relacionamento onde surgem casos de trocas de posições, isto é, o político torna-se presa e o eleitor predador. Nesse cenário de interesses conflitantes, formou-se com louvor o nosso personagem.

Sem profissão definida, tinha aproximadamente uns quarenta anos de idade. Moreno atarracado, de estatura baixa, o chamado tipo digestivo, que do mesmo modo como facilmente digere os alimentos, da mesma forma fazia com os seus ressentimentos e contrariedades, incapaz de guardar por muito tempo mágoas e rancores, qualidade indispensável para quem atua à margem da política. De instrução abaixo da média, mas grande experiência de vida que lhe deu a alcunha de Bico Doce, era bajulador por excelência e expressava-se facilmente com a lábia peculiar dos velhacos e oportunistas. Durante a campanha eleitoral, evento que aguardava com ansiedade pelo resultado dos dividendos que colhia, abandonava seus afazeres, se os tivesse na época, e tirava por conta própria licença-prêmio para poder dedicar-se em tempo integral à enganação dos políticos.

Era meticuloso nos seus planos. A primeira providência que fazia era a previsão da safra, isto é, o número de vítimas, sua identificação e condição econômica. Tomada essa providência, elegia o rol de suas necessidades mais imediatas. Seu pequeno patrimônio imobiliário, localizado na periferia da cidade, fora todo adquirido através de doações de políticos. Os terrenos, materiais de construção, tudo adquirido graças à maestria na arte de enganar. Tinha uma casa como residência, duas alugadas e uma terceira em acabamento.

Acima de tudo, era um calculista. Traçado o plano de ação, era insuperável nos meios para pô-los em prática. Psicólogo nato, sabia que a vaidade, especialmente quando amaciada com a lisonja, era o mais pródigo dos sentimentos. Assim, olhar vivo e permanente sorriso nos lábios, tinha a chave para abrir qualquer porta e conseguir as vantagens pretendidas. A essa espontânea simpatia, elaborou uma isca infalível através de um fraseado padrão de abordagem que envaidecia e iludia a expectativa de vitória do candidato. Desconhecendo se a vitima tinha ou não a chance de ganhar, pouco lhe importava, repetia o chavão: Doutor, por onde ando só se fala no seu nome. Fique tranqüilo, ninguém leva essa do senhor! O que depender de mim pode contar, estou totalmente as suas ordens. Sou pobre, mas o meu voto vale tanto quanto o do rico. Para o desfecho final, descaradamente afirmava que entre parentes e amigos dispunha de uns cem votos. Que era uma pessoa influente, querida e simpática em seu bairro. E como o voto é o principal ingrediente que desperta e instiga à fome insaciável do político, este, supondo estar a defrontar-se com um verdadeiro líder ou cabo-eleitoral, estampava no rosto a imagem da satisfação. Aproveitando-se desse deslumbramento que observava com muito atenção para certificar-se da eficácia do assalto, Bico Doce discorria, com voz lamentosa, sobre as dificuldades do momento, suas necessidades e imaginárias privações. Formulava em seguida o seu pedido, com muito tato, como se fosse o mais miserável dos homens. Despertando com astúcia a comiseração do candidato, sentimento que forma a mais caudalosa cascata do desprendimento humano, era tiro e queda, obtendo praticamente, sem exceção, os favores de um pedido aqui e outro acolá que, diga-se de passagem, estendiam-se aos municípios vizinhos. Ocorre que a esperteza de Bico Doce não foi suficiente para despertá-lo sobre uma lei segundo a qual, nesta vida, não há vantagem se desvantagem e vice-versa, que nem tudo são flores e que todo sabido tem o seu dia de trouxa. Não atentou, também, para o fato de que em todas as atividades, mesmo na política, onde os candidatos têm que primar pela paciência e a polidez, saber driblar sem frustrar o eleitor, o chamado corpo-de-cintura, existem os esquentados e temperamentais. Assim, alheio a essas vicissitudes da vida, teve o nosso personagem, certa feita, em hora imprópria, a infelicidade de deparar-se com Vivaldino, azarado e teimoso candidato a prefeito.

Faltavam três dias para a eleição. Nessa reta final, as tensões da expectativa, os atritos de toda a espécie e à frustração dos bolsos vazios, costumam por os nervos à flor da pele dos candidatos. Era exatamente com estava se sentindo Vivaldino. Atém do esgotamento financeiro, sentia-se que fora explorado, traído e, no intimo, antevia a terceira derrota. Como iria enfrentar a sua caótica situação financeira? Precisava de um meio para aliviar sua insuportável tensão. Eis que se depara com a vítima mais apropriada, Bico Doce, vezeiro facadista do seu dinheiro. Não podia mais aturar sua cara lambida, seus trejeitos ensaiados e discursos de desastradas profecias. Inocentemente, com seu habitual maneirismo, mãos para cima, Bico Doce dele se aproxima saudando-o com o viva “ o nosso futuro prefeito ! “ Foi aceso o estopim. Vivaldino desce do carro com todo o ímpeto e com incontida violência, lança-se possesso de fúria contra e indefeso Bico Doce. Aplica-lhe ás cegas socos e pontapés, prostrando-o ao chão. Não houve tempo para que alguém o socorre-se. Tudo foi muito rápido. Contorcendo-se de dor, encolhido como uma minhoca, consegue algum tempo depois recuperar forças e arrastar-se até uma casa. Os poucos transeuntes demonstram indiferença. Ali ninguém o conhecia. Sozinho e desamparado, começou aliviar, no peito opresso pelo ódio, a lançar sobre o agressor toda a sorte de impropérios. Que humilhação!

Mais calmo, começou a analisar o incidente. Teria sido merecedor de semelhante vexame? Do agressor obteve, na verdade, algum dinheiro e material de construção. Seria isso suficiente para justificar tamanha agressão? A sua maneira de proceder, reconhecia, ardilosa e calculista, animando indiscriminadamente os candidatos, inclusive os derrotados por antecipação, com prognósticos a esmo, não era correta. Acontece que se assim não procedesse, como iria obter, sem suar a camisa, suas pequenas vantagens, necessárias para a sua sobrevivência nesse mercado aberto da corrupção que são as campanhas eleitorais? Oportunidade é coisa que não se bota fora. Não que fosse contra a honestidade, longe disso. Se não era sincero, devia essa fraqueza de caráter às facilidades, ao fato de, vendo e convivendo, ter se inspirado no mercado aberto das negociatas políticas.

O bom exemplo, na ausência de um eleitorado esclarecido, tem devir de cima, que os políticos deixem de corromper o eleitor, pois, se assim continuarem a fazer, milhares, carentes e entregues a miséria e privações, estarão dispostos a vendê-lo. Enquanto alguns políticos tupiniquins entenderem que só conseguirão galgar ao poder pela via tortuosa, em detrimento da legalidade, das qualificações pessoais que honrem a política, e da conquista do voto pela inteligente arte do convencimento, das metas de governo, tudo permanecerá como está. O que eu, mísero eleitor e cidadão, posso fazer? Se os que têm, querem cada vez mais, eu que nada tenho, por que não tenho o direito de querer um pouco mais? A mais elevada lei moral é a lei da sobrevivência, pois, sem ela nada tem qualquer sentido. As eventuais pancadas doem, não há dúvida, mas são passageiras. É preferível suportar desaforos, lambadas nas costas, socos e pontapés, com a certeza de uma vida melhor, a viver honradamente descamisado, num mundo imoral das necessidades. Bolas! Não serei a palmatória do mundo!