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Olhar sobre o rio

O sol se põe em terras sergipanas e eu me debruço sobre a Rocheira olhando o rio. É fim de tarde e começo de cheia. A água desce murmurosa e segue caminho para o mar em sua periódica inundação. Não importa, nesse caminhar, o que digam os técnicos e tecnocratas. Se há comissões que definem o tamanho de sua vazão, não podem impor a cor das suas águas e nem a velocidade com que percorre o caminho. Não importa o tempo de recorrência. Importa o agora, o presente, o instante.

Lanço meu olhar além da linha visível, sonho com o rio de minha infância.

São Francisco da minha vida! Vejo-me criança, peneira na mão: “cai cai tanajura na panela da gordura”. Vejo-me a percorrer a margem do rio, na Saúde, pescando de jereré, “ariando” panelas, colocando roupas para “quarar”, pulando das canoas que gentilmente permitiam que as fizéssemos de trampolim, nadando em braçadas largas para o estado de graça de voltar ao útero de minha mãe.

Esse é o meu rio! Brinquedo da minha infância, amigo da adolescência, companheiro da maturidade.

Em meus devaneios, vejo as canoas singrando as suas águas. Posso sentir o cheiro dos bolinhos fabricados de massa de pó de arroz, do pirão feito com farinha, para pescar piabas; ouço o chiado dos cutelos raspando as tabocas para fazer os covos e meu estômago se anima ao captar o aroma do camarão torrado e da farinha quentinha no forno da casa de farinha.
Volto aos barrancos, à curva do rio, ao refúgio dos peixes. Xiras, traíras, piranhas, piaus, mandins, mussuns…e como se fizéssemos um pacto de sangue, o rio incorpora-se ao meu corpo, entranha-se na minha alma.

Meu coração desanda o ver o rio. Ora sou remanso, ora sou correnteza, ora sou água ou nem sei quem sou…

Ouço o ruído das águas correndo, os estalos da vegetação, o assobio dos pássaros.
E agora ele vem barrento, carregando consigo as cores de suas margens desmatadas pela ignorância e ambição dos homens. O rio não é como o homem, que tem como optar. Ele segue e deságua. Assinala sua presença em aflições e bênçãos, mas é fiel ao seu povo.

A enchente é o descanso do rio em seu leito e nele traz corpos colados ao seu ou que aguardam a hora de entrelaçar-se. É o seu leito que se abre, alaga o sertão, arrasta erva braba e mandacaru, traz ninho de cobra e tatu.

Suas águas vão passando. Carregam troncos, baronesas, árvores mortas, e o céu chora de emoção contribuindo para sua grandeza.

E o povo de suas margens emudece diante de sua força, faz festa, mede minuto a minuto a subida de suas águas. Os mais afoitos se alegram e se transformam na criança que fui. Pulam do cais, das canoas, experimentam a sensação sublime de flutuar sobre ele.
As cidades, os lugarejos vão ficando para trás e, de repente, lá na foz, o mar abre os braços numa demonstração de incontestável afeto.

Esse é o meu rio que busca revitalização e respeito e que, numa demonstração de solidariedade, vem trazer fartura para o povo que mesmo em suas margens tem fome e sede. Meu rio, nosso rio que vem mostrar aos homens que nenhum tipo de poder ou quantidade de dinheiro podem ser mais fortes do que a fé do povo e a força da natureza.

Quando as águas baixarem, São Francisco, o rio, terá cumprido o seu destino na integração nacional ofertando vida a milhões de brasileiros. São Francisco, o santo, vai descer do altar lá na Serra da Canastra e percorre-lo, até a foz, recontando os animais, ajuntando os que se perderam, curando os que ficaram feridos e colhendo ramos de arnica e carqueja, que são remédios para todos os males.