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Aridez paradoxal de um aquário

Já faz certo tempo que, ao preencher a ficha de qualquer hotel, não mais me considero um compositor e sim um “propositor”

A função de programador musical, em uma rádio onde não existe a ingerência perniciosa do Jabaculê, vai muito além da simples escolha aleatória das músicas. Na verdade, é uma função muito interessante, pois permite propor uma estética musical para uma parcela significativa da comunidade. Assim, a cada música que escolho, implicitamente, estou dizendo: “ei, eu acho esse som legal, gostaria que você ouvisse!” Partindo deste princípio, e com total liberdade de expressão facultada pelo diretor da Rádio Educativa FM, no meu horário de programação, a cada bloco musical de 30 minutos, tenho evidenciado a produção musical dos alagoanos com no mínimo um artista local em cada bloco. Perdoe-me por esse extenso preâmbulo, mas se fazia necessário para um melhor entendimento do que vem a seguir.

Pois bem, certa vez, resolvi fazer uma experiência cujo resultado, por mais que eu admitisse a possibilidade dele acontecer, mesmo assim, foi decepcionante e desestimulador. Cansado de perceber a passividade e permissividade da nossa classe artística (especificamente a musical) e dos alagoanos boanas, decidi experimentar na prática uma forma de corroborar a teoria que todos já conhecem. Daí, simplesmente, durante um mês inteiro, no meu horário de programação, que compreende o período vespertino, até às 17 horas, não programei nenhuma música dos artistas alagoanos. Nenhuma! Absolutamente nada! E olha que estou me referindo ao universo de 58 artistas que, democraticamente, têm suas músicas executadas na programação que faço. Na pior das hipóteses, qualquer pessoa poderia supor que ao menos um deles, e até mesmo alguns ouvintes, telefonaria para saber o que estava acontecendo, para questionar o porquê da Educativa, de repente, no referido horário, não estar mais tocando sua música. Ou então, numa atitude altruísta, em prol da coletividade, protestar pela exclusão da música alagoana na programação da única emissora que acolhe de braços aberto a nossa produção musical.

Não quero ser precipitado, rápido no gatilho, indo direto ao cerne da questão, onde adjetivos tipo: passividade, leniência, permissividade, alienação e etc, etc, poderiam ser amplamente usados para definir tal comportamento coletivo. Não! Antes, prefiro entender através de alguns vieses da questão. Todos, lamentáveis, é bem verdade. Um deles é que ninguém ouvia a Educativa, principalmente, no referido horário. Daí, sem audiência, não há questionamento, e ponto. Outra hipótese é de que qualquer um dos artistas, ao sintonizar a emissora e não ouvir mais sua música, nem às músicas dos colegas, simplesmente, pode ter pensado: foi obra do acaso, não dei sorte, e que se lixe o trabalho dos outros… Já o público ouvinte, prefiro deixar fora desse imbróglio. Afinal, não é parte tão interessada assim. Além do mais, na programação da Educativa o artista alagoano, até mesmo pela qualidade da música que produz, não é segregado e entra na programação de igual pra igual com os grandes nomes da música brasileira, sem quebra de padrão. Portanto, nem sempre o ouvinte vai saber se é um artista alagoano, ou não, que está sendo executado.

O fato é que durante todo o mês não recebemos sequer um telefonema e nas oportunidades em que estive pessoalmente com vários destes artistas, que estão no play list da Educativa, nenhum deles fez absolutamente qualquer tipo de comentário. Se atinaram para o que aconteceu, de tão silentes, coniventes e genuflexos diante dos fatos contraditórios à própria classe já não reagem mais, nem ao menos pela preservação da individualidade.

Já faz certo tempo que, ao preencher a ficha de qualquer hotel, não mais me considero um compositor e sim um “propositor”. Descobri isso em audições e audições das obras daqueles que já fizeram tudo de bom nessa seara. Portanto, meu exercício é de propositor e, como tal, explicitei-o ao questionar nossos artistas através da minha programação musical na Educativa FM. Porém, descobri o que no meu íntimo não pretendia, embora já soubesse. De que adianta ser propositor na aridez paradoxal de um aquário?