Na bela paisagem da zona da mata alagoana, nas proximidades do exuberante litoral de águas mornas e cor que varia entre o verde e o azul, vou cavalgando sobre o cavalo de uma pousada de Passo de Camaragibe. Levo sobre a sela de “Dourado”, a pequena Maria Laura que não esconde sua alegria. À nossa frente, noutro cavalo manso, segue “Quatorze”, um simpático caboclo alagoano que leva consigo Heitor, o meu caçula. Entre risadas e explicações, descemos morros e admiramos os pedaços de mata atlântica do local e o gado nelore que ponteia a pastagem.
Pegamos uma trilha que beira o rio Camaragibe e observo que seu curso é inesperadamente vigoroso. Tortuosamente, segue em velocidade em busca de sua foz. Às suas margens, encontramos homens pescando, crianças se banhando e, há menos de duzentos metros da pitoresca ponte que dá acesso à Cidade de Passo de Camaragibe diz que vamos voltar. Não Quatorze, quero passar pela ponte, lhe digo.
A ponte é bem estreita e até parece que foi construída por uma criança, tão graciosa e infantil se parecem suas paredes pintadas de amarelo e azul, formando uma espécie de adorno impensável para uma ponte dos dias atuais. Foi doada ao povo de Passo de Camaragibe na administração de Fernandes Lima, em 1921.
Meio, sem querer, Quatorze diz: “tão tratando fato”. De início não compreendi o que ele falava, mas, aguçando os sentidos e olhando em frente, percebo os sinais da degradação. É que, estando o matadouro da cidade interditado, as fateiras, pessoas que tratam de limpar as vísceras dos animais abatidos, realizam o serviço ali mesmo na beira do tolerante Rio Camaragibe. Resolvo, então, até mesmo pelo mau cheiro, seguir os conselhos do caboclo e damos meia-volta. Mesmo assim, vejo que, na outra margem do rio, uma senhora lava suas panelas nas mesmas águas.
“Mas Quatorze, e ninguém toma uma providencia contra uma coisa dessas?”.
O bom matuto coça a cabeça, demonstrando preocupação e diz, bem baixinho:
“A Promotora deu três meses”.
“Três meses para quê?”.
“Sei direito não, doutor, mas parece que foi prá acabar com isso ou fazerem um matadouro”.
“Faz quanto tempo que ela deu essa ordem?”
“Não sei, mas já faz um tempo. Será que os meninos num querem espiar aquele cavalo novinho, brabo que só. Ainda não foi nem castrado. Àquele todo preto que tá sozinho lá no cercado”, desconversa o guia.
“É, acho melhor”.
Tocamos nossos cavalos e vamos espiar a valentia do ainda indomável cavalo novo, que, ao perceber nossa presença corre de um lado a outro, com sua crina negra caindo sobre seus olhos. Os meninos enchem os olhos de felicidade.
Num site da Prefeitura Municipal consta que, seu filho mais famoso é Aurélio Buarque de Holanda, filho de Manuel Hermelindo Ferreira e de Maria Buarque Cavalcanti Ferreira e que viveu em sua terra natal durante sua infância, e parte da adolescência, tornando-se escritor, crítico literário, tradutor, lexicógrafo, filólogo e sinônimo de dicionário, acrescentando que pretende fazer a divulgação desse patrimônio cultural como forma de incrementar o turismo na cidade. É uma boa ideia e deve ser levada adiante, mas é bom que a edilidade de Passo de Camaragibe cuide melhor das condições sanitárias de seu povo, para não envergonhar Quatorze e nem constranger seus visitantes.
A propósito, na minha infância, entre os anos 60 e 70, não haviam preocupações ambientais e nem sanitárias, e uma das coisas que me recordo era do encontro semanal das fateiras, por trás de um chafariz da cidade, no qual, conversando, cantando e falando mal da vida alheia, as fateiras iam limpando as vísceras que, depois de secas, formavam as gostosas tripas salgadas vendidas na feira livre. Ao lado das fateiras, sempre, pela abundância de comida, sempre tinham os cachorros e quando se queria dizer que alguém era mentiroso, falavam assim: “mente mais que cachorro de fateira”. As fateiras de hoje, mesmo sem leitura, sabem que sua atividade pode provocar problemas com a vigilância sanitária, principalmente quando o serviço é feito de forma inadequada, por isto que as de Passo de Camaragibe ficam escondidas numa encosta do rio, recoberta por frondosas árvores, mas, toda gente de lá deve saber do fato. Mas, pelo visto, ninguém denuncia o fato à Promotoria.