Em uma destas tardes iluminadas de Maceió, obtive a informação de que um alagoano ilustre estava na terrinha passando férias. Era o dicionarista Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, que viveu quase toda sua vida no Rio de Janeiro, mas teve um preâmbulo glorioso em Alagoas. Foi um encontro inesquecível com o mestre, num aprazível casarão da praia de Pajuçara.
Olhos azuis cintilantes bem abertos e perdidos em algum ponto do espaço, cabelos brancos encrespados, a voz grave e pausada, gestos lentos, porém expressivos, e a mão trêmula, em consequência do Mal de Parkinson. Era dezembro de 1988.
Assim estava o alagoano de Passo de Camaragibe, dicionarista, filólogo, tradutor, contista, crítico literário, professor e imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL), Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, aos 78 anos, na casa de amigos, enquanto curtia o que viriam a ser suas últimas férias na terra natal e sua derradeira entrevista.
Poucos dias depois de conversar comigo, em Maceió, e falar sobre sua vida em Alagoas e de sua longa trajetória intelectual até se transformar no mais famoso dicionarista brasileiro, e virar sinônimo dele mesmo, o mestre Aurélio foi acometido de uma forte crise de pneumonia e teve que voltar às pressas para o Rio de Janeiro, onde morou desde os 28 anos de idade.
Na época, seu amigo Emer de Mello Vasconcelos, anfitrião do mestre na terrinha, me informava que Aurélio Buarque se recuperava lentamente na Clínica Bambina, no Rio de Janeiro. Mas no começo de 1989, o mestre não resistiu e faleceu.
“A concepção de um dicionário exige calma e muita pachorra (do Aurélio: vagar, lentidão). É como uma paixão, uma cachaça da boa. Uma obra interminável que nunca sai perfeita como a gente quer. Sou o maior leitor de meu próprio dicionário”, revelava Aurélio Buarque, sentado em uma confortável poltrona, a meu lado, reclamando do “bombardeio” de flashes da câmera do repórter fotográfico Adailson Calheiros. E o mestre Aurélio se empolgou.
Gesticulando para o alto, já com cabelos desalinhados, parecidos com os do físico Albert Einstein, ele recitou um verso do poeta mineiro Carlos Drumonnd de Andrade para expressar seu amor pelas palavras: “Lutar com palavras é a luta mais vã/ Então lutamos mal rompe a manhã”.
Um dos pontos altos da entrevista, e de valor histórico, foi sua descrição da época em que conviveu com grandes intelectuais, como os também alagoanos Graciliano Ramos, Jorge de Lima, Théo Brandão, José Lins do Rego — um paraibano que adotou Maceió — e a cearense Rachel de Queiroz, que passava uns tempos em Maceió.
Aurélio lembrou dos encontros nos cabarés de Jaraguá e do Café do Cupertino, no Centro, onde se reunia o seleto grupo de intelectuais para conversas literárias, políticas e sobre a vida mundana da capital. Aurélio descreveu uma das atrações da época, o então emergente escritor Graciliano Ramos.
“E chegava aquele homem mal vestido, com paletó de linho amarfanhado, feito por algum alfaiate de Palmeira dos Índios. Figura predominante e malcriada. Gostava de dizer aforismos e palavrões. Acendia um cigarro atrás do outro”. E ele continuava a falar sobre essa época, com um certo sorriso nos lábios, sempre assistido de perto pela mulher, Marina Baird Ferreira.
“Nunca fui totalmente envolvido por esse grupo de eternos boêmios, mas de vez em quando me aventurava pelos casarões iluminados de Jaraguá, onde ficavam os melhores cabarés. Me divertia muito “caçando” mulher na zona com amigos, mas nunca fui da pá virada”.
Retomando o fio da meada, pergunto ao mestre como ele fazia para criar tantas palavras e verbetes. “Em uma primeira etapa, tiro de outros dicionários o que pode ser útil e vital. Depois faço anotações. Vivo anotando. Principalmente notícias de jornais, revistas e televisão, e da gíria cotidiana do povo, cuja convivência direta com ele é fundamental para o processo de criação dos verbetes”.
Ele renegou o fato de ser considerado um sinônimo de dicionário e sempre se recusou a registrar “Aurélio” como dicionário. “Da minha parte acho muito pedantismo aceitar essa comparação, pois existem outros grandes dicionaristas, como o Caldas Aulete”.
Com sua morte, Alagoas e o Brasil perderam um dos maiores fenômenos editoriais do país. Seu mais recente produto, o Miniaurélio Século XXI da Língua Portuguesa, com mais de 50 mil verbetes, já ultrapassa a casa dos 60 milhões de exemplares vendidos, desde seu lançamento, em 1993.