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A surpreendente saga da penedense Maria da Cruz

“Na história de Minas Gerais há mulheres que se imortalizaram, fosse pela beleza ou por seus talentos, fosse também por martírio sacrossanto. Mas, digam-nos agora se alguma foi, mais do que esta, digna de memória de nossos fastos.” Este foi um tributo prestado pelo historiador mineiro Diogo de Vasconcelos, ao encerrar o capítulo terceiro da segunda parte da “História Média de Minas Gerais”, de 1917, de sua autoria, a Maria da Cruz, acusada de ter liderado, no ano de 1736, norte da Capitania de Minas Gerais, juntamente com o filho Pedro Cardoso e o cunhado Domingos do Prado, uma revolta contra a cobrança do “imposto da capitação”, que substituiu o “quinto do ouro”.

A aludida sedição, cognominada de “Motins dos Sertões”, é bem conhecida dos apreciadores da história de Minas e consta do Arquivo Público Mineiro, que publicou, através de suas revistas, algumas das cartas escritas pelo então governador da Capitania do Estado, Martinho de Mendonça, que comandou a repressão ao movimento. À época, Maria da Cruz, viúva do coronel Salvador Cardoso de Oliveira, sobrinho de Mathias Cardoso de Almeida, famoso bandeirante e desbravador paulista, dominava com a família a região do Sítio das Pedras, atual cidade de Pedras de Maria da Cruz, situada no norte de Minas, à margem direita do Rio São Francisco, Micro-Região Sanfranciscana de Januária.

Decretadas as prisões dos envolvidos, exceto Domingos do Prado que conseguiu escapar, Maria da Cruz e o seu filho Pedro Cardoso são presos e levados para Vila Rica, onde poucos dias depois são transferidos para uma fortaleza no Rio do Janeiro, na qual permaneceram detidos por um ano. Julgados em Salvador pelo Tribunal da Relação, a líder insurgente é indultada, mas o filho condenado a degredo. Nos rastros da história da heroína, o casal de historiadores mineiros Giselle Fagundes e Nahílson Martins, procedentes da cidade de Montes Claros (MG), promoveram um fantástico e fidedigno trabalho de pesquisa, que remontou, dentre outras fontes, documentos do Arquivo da Torre do Tombo em Portugal, manuscritos da Biblioteca Nacional, Casa Borba Gato em Sabará (MG) e processos de ingressos em irmandades nobiliárias por parentes afins.

Através da busca documental, alvo da publicação do livro “Alvará de Perdão Concedido a Dona Maria da Cruz, Viúva”, comprovou-se que Maria da Cruz Porto Carreiro era natural e batizada na freguesia de Nossa Senhora do Rosário da Vila do Penedo, sendo, inclusive, irmã do Frei Manoel da Madre de Deus, que foi guardião do Convento de São Francisco da referida localidade. Em seu testamento, integrante do acervo do fórum Edmundo Lins (Serro – MG), aberto em 1760, ela confirma a sua origem natal e registra ser filha de certo capitão Pedro Gomes e de Dona Domingas. De seu casamento com o então capitão paulista Salvador Cardoso, que se encontrava na região do Baixo São Francisco combatendo os gentios, menciona seis filhos: O mestre de campo Mathias Cardoso de Oliveira, Padre João Cardoso, Pedro Cardoso de Oliveira, Padre Manoel Cardoso e Dona Maria Cardoso de Oliveira e Dona Catarina do Prado, casadas, respectivamente, com os coronéis Alexandre Gomes Ferrão Castelo Branco e Domingos Martins Pereira.

Mas, afinal, quais seriam as famílias ascendentes de Maria da Cruz? Segundo o manuscrito “Nobiliarquia Brasiliense”, de Roque Luis de Macedo da Câmera, o pai de Maria da Cruz seria Pedro Gomes de Abreu, capitão-mor de Sergipe-Del-Rei, neto de Leonel de Lima, Senhor da Casa de Regalados e sua mãe, Domingas Francisca Travassos, filha de Manoel Martins Chaves. A informação, no entanto, é refutada pelo casal pesquisador de Montes Claros, por não localizar nos anais históricos sergipanos o nome de Pedro Gomes de Abreu na lista de capitães-mores de Sergipe. É suscitada outra hipótese, aparentemente mais lógica, de que o pai de Maria da Cruz seria Pedro Gomes de Abreu, primeiro administrador da povoação de Urubu de Baixo, atual cidade de Propriá (SE), que teria se casado com a filha do Sr. Domingos da Cruz Porto Carreiro, proprietário de uma fazenda vizinha.

Esse novo Pedro Gomes de Abreu era filho de Pedro de Abreu Lima, genro de Antônio Cardoso de Barros, por sua vez, filho de Cristovão Cardoso de Barros, o conquistador de Sergipe, e neto de Antônio Cardoso de Barros, primeiro Provedor da Fazenda da colônia, devorado em 1556 pelos índios caetés, juntamente com o primeiro Bispo D. Pedro Fernandes Sardinha, após o fatídico naufrágio da nau Nossa Senhora da Ajuda na costa de Coruripe (AL). Pedro de Abreu Lima foi agraciado pelo sogro com concessões de terras da região da “Serra da Tabanga” e, posteriormente, com áreas do futuro município de Propriá. No entanto, essa tese alternativa sofreria duro golpe. No texto “Propriá em seus albores” (1956), de autoria de João Fernandes Brito, é citado o “Padre João Gomes de Abreu” como sendo o filho referenciado de Pedro de Abreu Lima. Mesmo assim, o casal Giselle/Nahílson, que ficou apegado à suposição tão pitoresca, não descarta a possibilidade de algum erro de transcrição de algum manuscrito antigo pelo aludido autor.

O que não paira dúvidas, é que a rede genealógica de Maria da Cruz do Porto Carreiro, qualquer que seja a sua vertente, está povoada de gente fidalga e importante. A trajetória de sua família, bem como a sua saga própria, está ligada, de forma intrínseca, à história da ocupação das margens do Rio São Francisco. O sobrenome “Porto Carreiro” é um dos mais evidentes entre os primeiros contemplados com concessões de terras em Sergipe, inclusive figurando nos colonizadores pioneiros do município de Porto da Folha. Um dos genros de Maria da Cruz, o coronel Alexandre Gomes Ferrão Castelo Branco, Cavaleiro da Ordem de Cristo, afora posses no recôncavo baiano, era Senhor do Morgado de Porto da Folha. O seu primogênito, Antônio Gomes Ferrão Castelo Branco, potentado de igual fidalguia, que chegou a residir na Vila do Penedo, esteve presente, junto com os irmãos, em 07.02.1802, na fundação da Vila de Propriá.

No ano de 1789, em pleno ciclo do ouro, deflagrou-se a “Inconfidência Mineira”. A conjuração, mormente pelo martírio na forca de seu principal líder, o alferes Joaquim José da Silva Xavier, o “Tiradentes”, representa o maior símbolo da luta do povo brasileiro contra a opressão do governo português e anseio de liberdade. De bom alvitre ressaltar, porém, que 53 anos antes, uma revolta similar, talvez obscurecida por ter ocorrido em uma época mais remota e em local distante, em que pese ainda a onda de violência e barbárie perpetuada por algumas das milícias rebeldes, combatia, de igual modo, a cobrança abusiva, por parte da coroa lusa, de impostos incidentes sobre a extração do ouro. A suposta cabeça central do movimento, Maria da Cruz, que teve, a título de apoteose repressiva, a prisão engendrada pelas autoridades mineiras, certamente, também é merecedora do devido pedestal histórico e imortalidade.

A seu respeito, ilustra o historiador Diogo de Vasconcelos, na obra supracitada de 1917: “A têmpera varonil não lhe tirava a natural doçura e fineza de trato. Conseguia atrair o afeto de parentes, subordinados e escravos, sem que sentissem a firmeza voluntariosa do mando. O tranqüilo esquecimento, a causa melhor da morte apagou o seu nome, conservado apenas no velho e obscuro arraial, à beira do grande rio.” A memória de Maria da Cruz Porto Carreiro, em caráter inédito, está sendo resgatada pelos dinâmicos historiadores mineiros Giselle e Nahílson, os grandes descobridores meritórios de seu “status penedense”. À luz dos registros testamentais, os restos mortais da ilustre patrícia e de seus amados esposo e filho mais velho, amortalhados no hábito do patriarca São Francisco, foram enterrados na antiga Capela de Nossa Senhora da Conceição, então Sítio das Pedras, mesmo local onde foi reconstruída a Igreja do mesmo nome, porém, hoje, sem vestígios das sepulturas. Como último legado, deixou cinqüenta mil réis de esmola ao Convento de São Francisco da Vila do Penedo. Ao que parece, pela tão significativa lembrança, o seu vetusto torrão natal nunca foi de todo esquecido e, decerto, preservado, no recôndito do coração, com muito carinho e grata recordação.