Wilson Lucena

Wilson Lucena

Jornalista, pesquisador e membro da Academia Penedense de Letras

Postado em 17/09/2009 13:45

O controverso e lendário Lampião

Lampião e Maria Bonita
O controverso e lendário Lampião

Há 71 anos, na fria madrugada do dia 28.07.1938, na grota do Angico, à época, município de Porto Folha – Estado de Sergipe, Lampião e mais dez comparsas, incluindo sua companheira Maria Bonita, eram trucidados pela volante alagoana do Tenente João Bezerra. Ali tinha desfecho uma odisséia sangrenta de dezenove anos e também o fim do cangaço. A cada ano de sua morte, apesar das novas teses que tentam desmistificar a sua fama de bandido insurgente e justiceiro, o mito do “rei do cangaço” continua evidente. Mais idolatrado do que odiado, Lampião representa hoje forte identidade cultural e instrumento de marketing turístico em parte do Nordeste. Para muitos adeptos, pouco importando a sua trilha de violência, o célebre cangaceiro ainda se configura em um símbolo da resistência, destemor e bravura do povo sertanejo.

Cangaço e sertão são indissociáveis. O sertão desértico, magro, das secas e dos sofrimentos. Região de uma gente de grande fé, índole pacífica, humana e piedosa. E também de um povo orgulhoso, forte e temível diante de reveses e provocações. Muito embora na concepção acadêmica de alguns autores modernos, o banditismo rural no Nordeste seja diagnosticado como uma regressão ao primitivismo de uma subcultura ainda arcaica, é incontestável que a injustiça social, fruto da ausência de um estado de direito e de um sistema arbitrário dominado pela lei do mais forte, coronéis e potentados da terra, concorreu para o surgimento e proliferação da figura do cangaceiro.

A vasta biografia de Lampião, assim como sua personalidade complexa e enigmática, é repleta de versões contraditórias ou fantasiosas, fatos emaranhados, dados cronológicos imprecisos e mistérios não desvendados. As dúvidas começam com a própria data de seu nascimento na Fazenda Passagem de Pedra, município de Vila Bela, atual Serra Talhada-PE, sendo a mais provável a de 04.06.1898. Desde cedo, Virgulino Ferreira revelou-se num jovem inteligente, ousado e competitivo, alcançando excelente performance em toda atividade ou arte que exerceu, tal como almocreve, arrieiro, vaqueiro, sanfoneiro, além de bom dançarino.

Há um consenso de que o seu estreito vínculo com a violência e o banditismo emergiu a partir do renitente conflito com o vizinho Zé Saturnino, que provocou o êxodo da família Ferreira, lado mais fraco, para Nazaré, comarca de Floresta – PE, e depois para Água Branca em Alagoas. O que se sabe é que Lampião e seus irmãos Antônio e Levino passam a ter uma vida dupla, ora como almocreves, ora como cangaceiros amadores. Envolvem-se com o bando dos “Porcino” e são acusados de participação conjunta no ataque à vila de Pariconhas, pertencente, à época, à Água Branca. Em represália, provavelmente em maio de 1921, o pacato patriarca José Ferreira, em lugar dos filhos foragidos, é fuzilado injustamente pela tropa da polícia comandada pelo então 2º Tenente José Lucena.

Lampião jura eterna vingança. Em 1922, já no comando do grupo do famoso cangaceiro “Sinhô Pereira”, empreende assalto à casa da baronesa de Água Branca, sua primeira notória investida. Convocado para combater a Coluna Prestes, em 1926, visita Padre Cícero no Ceará, onde recebe a simbólica patente de capitão. Devidamente armado e municiado, ao invés da missão patriótica, retorna ao cangaço e no ano seguinte promove o malfadado ataque a Mossoró-RN. São renhidos combates com as volantes de sete estados. À proporção que os irmãos vão tombando, exacerba-lhe os pendores criminosos e a perversidade, transformando-o no bandido mais sanguinário e procurado do país.

No ano de 1934, em pleno calor do cangaço, o escritor sergipano Ranulfo Prata, em estilo acusador, publica um livro em que relata as atrocidades praticadas e dos rastros de sangue, dor, luto e terror deixados por Lampião. Entretanto, a maioria dos autores clássicos do cangaço discorda em rotular Lampião apenas como um assassino frio, primitivo e bárbaro, já que a sua ambivalente personalidade também registra lampejos de generosidade, lealdade e respeito recíprocos com companheiros e simpatizantes, além de reverência religiosa.

Ultimamente, alguns livros contemporâneos, em caráter mais requintado, tentam desmistificar a tradicional imagem de herói sertanejo de Lampião. É o caso de “Guerreiros do Sol: Violência e Banditismo no Nordeste do Brasil” escrito pelo historiador Frederico Pernambucano de Mello. O pesquisador defende a tese do “escudo ético”, que mostra como o “rei do cangaço” e muitos outros cangaceiros utilizavam o argumento da vingança para exercer a bandidagem. “O cangaço de Lampião não era de revolta, mas um negócio, assevera.”

Todos concordam que o reinado do “rei do cangaço” não teria durado tanto se não fosse a grande rede de apoio dos coiteiros, com ênfase para o jogo de interesses recíprocos com os coronéis. Na verdade, ninguém tinha coragem de negar ajuda aos bandidos e todo mundo também morria de pavor da polícia. Os coronéis não tinham esse problema. Dos potentados que mantiveram lealdade com Lampião, destacam-se o coronel José Abílio de Bom Conselho (PE), o coronel Joaquim Rezende de Pão de Açúcar (AL) e o capitão Eronildes de Carvalho, médico do Exército, que se tornaria governador de Sergipe em 1934.

A “odisséia lampiônica”, enfim, tem seu epílogo na grota do Angico (SE), na fria e chuvosa madrugada do dia 28.07.1938. Couberam os louros da façanha ao Tenente João Bezerra da polícia alagoana, que consegue surpreender Lampião em seu esconderijo. O combate dura pouco e praticamente não há reação. Zé Sereno, sua companheira Sila e outros bandidos conseguem fugir, mas o fogo cruzado atinge em cheio o estado maior do “rei do cangaço”, que morre juntamente com Maria Bonita, seu lugar-tenente Luiz Pedro e mais oito comparsas. As cabeças dos cangaceiros são decepadas e os corpos deixados insepultos no local.

Fugindo das paixões e dos clichês clássicos, com conteúdo mais refinado e acadêmico, algumas publicações recentes procuram melhor reavaliar o real papel de Lampião e do cangaço. A historiadora francesa Elise Jasmin, em sua obra iconográfica “Cangaceiros”, ilustra que Lampião e seus bandoleiros, para uma parte do Brasil, encarnaram a violência de uma sociedade arcaica e a face negativa da modernidade. Já para outra parte do sertão, representaram valores como a bravura, o heroísmo e o senso de honra.

O que não se pode negar, qualquer que seja a proposição defendida, é que a violência dos cangaceiros tinha ligação intrínseca com o meio inóspito, abandonado e injusto em que viviam. Lampião, afora as atrocidades e a rede de clientelismo corrupto, ao longo de um reinado de 19 anos, à luz de sua bravura, astúcia e genialidade militar, combateu as forças policiais conjuntas de sete estados, derrotando-as em vários confrontos, intimidou coronéis, zombou de autoridades e governantes e desafiou o próprio poder central do Brasil, gerando, assim, o fascínio, o mito e a lenda do herói invencível, destemido e ousado.

O exótico cangaceiro criado por Lampião, com seu traje vistoso cheio de adereços, códigos próprios, ares de imponência e liberdade, passou a exercer forte identidade cultural no Nordeste, tanto no folclore, literatura popular, poesia de cordel, canção de gesta, dança, música, além de outros segmentos artísticos. Anualmente, no dia 28 de julho, na grota do Angico, é celebrada uma missa de ação de graças em memória de Lampião. Por ironia, no local em que ele tombou com Maria Bonita e outros companheiros, foi erguido um lúgubre marco de ferro pelo seu carrasco, o Tenente João Bezerra. Todavia, assim como outros personagens intrigantes da história, o espectro do “rei do cangaço” permanece vagueando pelas caatingas e muito bem vivo na mente do nordestino, especialmente do sertanejo.

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  • Nani Rodrigues/RJ Parabéns pela excelente matéria! É algo maravilhoso esse resgate da cultura Nordestina!
  • denilson lima andrade Excelente contextualização. Bela matéria que sempre é de se esperar vinda deste grande jornalista e pesquisador Lucena.
  • evelyn nada aver ! assisti a peça deles e foi ótima eles arrazarão, eu adorei !! e isso q vcs falaram não tem centido dó que é verdadeiro ! rum...
  • luiz carlos moreira desde garoto que ouvi falar sobre lampião,segungo comentarios dos mais velhos so oivia falar sobre as suas barbaridades, o povo daquele tempo podia aumentar mais mentir, jamais. Portanto acredito que ele era mesmo perverso, e cometeu crimes hediondos como tambem os compassas que o acompanhavam.
  • luiz carlos moreira gostaria muito de conseguir ums escritos sobre este cangaceiro principalmente do historiador e pesquizador frederido pernambucano de melo, mas não consigo o seu endereço. se poderem me ajudar eu ficarei agradecido.