Luiz Paulo Reis Galvão

Luiz Paulo Reis Galvão

Médico Gastroenterologista e Endoscopista

Postado em 24/04/2019 07:40

O velho e a ovelha negra

Ilustração
O velho e a ovelha negra
O velho e a ovelha negra

Era uma velha casa, uma bela casa, um casarão antigo, um velho sobrado do final do século XIX. Era o último dia do ano. Na grande sala o velho Genaro confere os ponteiros do grande relógio de pêndulo na parede. 23h30. Ninguém apareceu até agora. Sua prole de duas filhas, dois filhos e nove netos. Em um canto da sala um piano de cauda. Sobre ele um porta-retratos com a foto de Dona Blandina, a pianista. O piano nunca mais foi tocado desde que ela partiu para outras vidas. Seu Genaro mareja os olhos lembrando de sua companheira de tantos anos, de lutas e cumplicidade. A mesa estava pronta para a ceia, seu Genaro está à espera da familia para a chegada do novo ano. Liga a filha mais velha:

- Feliz ano novo, pai. Infelizmente não vou poder ir aí. Na sequência, vão ligando os demais também impossibilitados de irem. O velho, tristonho senta na cabeceira da mesa e chama a funcionária.

- Maria, apague as luzes. Deixe só a do piano.

- E o senhor não vai comer?

- Não, eu vou só chorar e olhar para minha companheira.

Toca a campainha. À porta está Robertinho, um de seus netos. Avesso aos estudos, envolvido com drogas, era chamado à boca pequena de "ovelha negra" pelos tios. Há dois anos tentaram interná-lo. Seu Genaro vetou.

- Esse menino tem um brilho nos olhos que só eu vejo - comentava.

Músico de garagem, sensível, meio poeta, Robertinho fazia o possível para ter o estilo dos primos e tios, mas não concordava com certas posições da família. O velho italiano continuava presidindo as empresas embora no dia a dia os filhos e o neto mais velho recém formado, é que tocavam a administração. O velho Genaro na verdade não digeria bem as novas técnicas administrativas imprimidas pelos filhos, embora se baseassem em metodologias internacionais modernas. Faltava, no entanto, a paixão e a intuição com as quais construiu tudo aquilo a partir do zero.

- Oi, Vô! Vim te ver - entrou Robertinho devagar abraçando o velho.

- Você não está com seus pais?!

- Não, estava por aí.

- Drogas, meu neto?

- Não, Vô. Tô tentando sair dessa.

- Maria. Acenda as luzes e traga o champagne.

Avô e neto conversam alegres na grande mesa.

D. Blandina observa de cima do piano. Há uma sintonia nos olhares, nos sentimentos e nas posições. Rompe o ano novo e os dois se abraçam. Há naquele abraço uma comunhão da solidão com o afeto, do velho com o novo, do ocaso com o amanhecer.

Depois do champagne, o fiel motorista Sebastião leva os dois para uma antiga cantina do bairro por sugestão do neto. Lá Genaro encontra antigos companheiros da colônia italiana e relembra cenas dos tempos antigos. Robertinho compartilha da alegria daqueles idosos. Até parece que vivera aqueles pretéritos momentos. Mais uma garrafa de vinho. O velho está alegre. São duas da manhã.

- Queria estar diante do mar quando surgisse o primeiro sol do ano - comentou Genaro.

- Então vamos descer a serra agora, Vô. Também quero ver o mar...

O carro desce suavemente pela estrada. Sebastião atento ao volante. No rádio as antigas canções de Nápoles. No rosto marcado pelo tempo uma lágrima de saudade.

Faltando poucos quilômetros o trânsito pára, e o tempo avança. Não vai dar tempo de surpreender o sol. Há uma pequena estrada de terra à direita com uma placa: "Sítio Santa Bárbara".

- É o sítio de Antonio Máximo! Lá do almoxarifado da fábrica. Ele falou que iria para lá no ano novo - comenta Sebastião - Lá tem uma pequena área de penhasco que dá para ver o mar ao longe. Já estamos perto do litoral.

- Toca pra lá - comandou Genaro.

- Patrão, a que devo a honra? - falou o dono do sítio.

- Ao engarrafamento e ao meu desejo de ver o mar. Me leve logo nesse penhasco.

Já havia o primeiro clarão na barra do dia. Era um pequeno mirante com um banco de pedra embaixo de um flamboyant amarelo. Não havia nuvens e o sol apontou devagar. Robertinho faz os acordes de "Cuore Ingrato" no violão e o velho canta baixinho com a voz embargada. O sol desponta.

- Conheci sua avó em um lugar como esse em Nápoles. Acho que foi o momento mais significativo de minha vida. Ao longo do horizonte passava um barco e ela falou que um dia um barco nos levaria para um lugar distante. Tempos depois aportávamos no Brasil. A energia dela por trás da cena me possibilitou tudo que consegui na vida.

- Vô, eu trouxe o retrato dela na mochila.

- Vou sentá-la no banco com a gente.

Caprichosamente passou um pequeno barco pesqueiro no horizonte, uma silhueta desenhada pelo sol.

- Meu Deus! É a mesma cena. Ela e eu, eu e ela. Num futuro não muito longínquo partirei em um barco desses pra encontrar minha querida. Robertinho, acho que você é a extensão de mim. Cuide de você, do mal que lhe assombra e dê sequência ao meu trabalho.

- Vô, você é a melhor pessoa que conheço e, nesse momento mágico eu lhe prometo: vou cuidar de mim e de outros que lutam para sair do vício e não conseguem.

Voltaram pro casarão e descansaram. À tarde a mãe de Robertinho chegou.

- Feliz ano novo, papai!

- Pra você também minha filha, tudo bem com você?

- Mais ou menos papai, Robertinho passou a noite na rua com a turma que ele convive e até agora não voltou. Esse menino não tem jeito.

- Não se apresse no seu julgamento, minha filha!

- Oi, mãe, feliz ano novo! Dê-me aqui um abraço.

- Que faz aqui, Robertinho?

-Vim passar o ano novo com Vovô.

- Eu pensei que...

- Vocês pensam muito. E muito erram - comentou o velho Genaro.

Robertinho passou a trabalhar na empresa e por sugestão do avô começou de baixo para vivenciar cada nível por curtos períodos até ir galgando os cargos de direção. À noite: a faculdade. Durante o dia: o trabalho e as lições do avô. Os tios, vice­presidentes, mantinham um olhar meio torto, mas seu Genaro ainda tinha mão de ferro e poder que foi aos poucos delegando ao neto. As empresas cresceram com o novo estilo "Robertinho". Moderno, mas democrático. Tecnológico, mas sentimental. O Sítio Santa Bárbara virou "Fundação Genaro Bione", com 150 vagas para tratar dependentes químicos. O Mirante virou “Avarandado do Amanhecer D. Blandina Bione". Poucos anos depois, Seu Genaro embarcou no veleiro do sol com destino ao infinito. As cinzas foram jogadas do "Avarandado do Amanhecer''.

Quinze anos se passaram. Dr. Roberto despacha com sua assessora na presidência da empresa. Atrás da grande mesa o retrato dos avós. Juntos como queria o velho. Os engenheiros apresentam os dois novos projetos da Fundação: reflorestamento na Serra do Mar e reciclagem de lixo empregando moradores de rua. Coisas da "Ovelha Negra". Na foto o velho parece sorrir. 

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  • Jaime Emocionante! Meu irmão é um grande poeta!
  • MARIA ANTONIETA DA Amei. Uma grande lição para os filhos que abandonam os pais em dias significativos para eles. Um velho iria atrapalhar. E é isso . O amor do neto é grandioso. Parabéns ao autor. Muitas bênçãos para ele e família. Vou compartilhar o mais que puder. O engraçado é que hoje é o dia dos netos. Um abraç